“A dor é a única verdade que o homem arrancou da provação da vida. A alegria não faz ninguém feliz, é apenas um relâmpago. O homem só é feliz quando pratica a caridade, o amor ao próximo. É pela dor que a gente sente que está vivo.”
(Ado Malagoli)
Fotografia de Ado Malagoli no atelier pintando "O Grito"
Ado Malagoli (Araraquara, 28 de abril de 1906 - Porto Alegre, 4 de março de 1994), sem sombra de dúvida, pode ser considerado um dos grandes pintores brasileiros, embora talvez tenha tido menos repercussão nacional que alguns de seus contemporâneos. Deve-se isso, provavelmente, à sua escolha em pintar e ensinar no Rio Grande do Sul. Mas nada diminui a sua arte, ao contrário, a pintura, os artistas e a sociedade gaúcha devem muito a ele. Durante toda a sua trajetória, realizou um trabalho de altíssima qualidade, imprimindo personalidade e um estilo próprio à sua pintura.
Malagoli era uma criança de cinco anos e morava em uma fazenda em Araraquara, no interior de São Paulo, quando perdeu o pai (assassinado durante uma desavença com uma antigo empregado). Na época, tinha oito irmãos, o mais velho com quinze anos, e sua mãe lutou bravamente para sustentar os filhos. A necessidade de sobrevivência fez com que a família se mudasse para a cidade de São Paulo, buscando melhores condições de vida, quando o pintor tinha oito anos de idade.
Em suas telas está presente o verde do campo e dos cafezais e na densidade dramática de suas composições, encontramos um sentimento de tristeza e angústia, que podem ter origem no trágico acontecimento ocorrido em sua infância.
Sobre isso, escreve Fernando Corona, em 1966:
A expressão assusta enquanto a pintura em si empolga. A riqueza de tonalidades, que o mestre emprega em suas telas, aflora de dentro para fora em belíssimas e ricas harmonias de luz, Parece luz de mistério um tanto dramática, e talvez por isso coerente e apropriada ante ruínas de casarios e miséria humana. Luz de mistério e de poesia encerrando em seu conteúdo uma esperança. (CORONA, 1977, p. 135)
Vidas Secas: O Grito, s/d, óleo sobre tela, 125 x 93,8 cm, acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS)
O menino que costumava rabiscar as paredes e as calçadas com giz, carvão e torrões de terra, foi matriculado por sua mãe no Curso de Artes Decorativas na Escola Profissional Masculina de São Paulo, onde estudou entre 1919 e 1922. Em seguida frequentou o Liceu de Artes e Ofícios, até 1928. Lá conheceu outros artistas e surgiu a oportunidade do primeiro trabalho como pintor com Francisco Rebolo (1902 - 1980), pintando painéis decorativos em residências, hotéis e restaurantes. Nos finais de semana, juntamente com Alfredo Volpi (1896 - 1988), saiam para os arredores de São Paulo e exercitavam a pintura de paisagens em telas.
Paralelamente Malagoli sempre exerceu outros trabalhos para sobreviver, chegando inclusive a trabalhar como jornalista e retocando fotografias, na década de 1930, já fixado no Rio de Janeiro, onde havia ingressado na Escola Nacional de Belas Artes. Assim como os modernistas, insurgiu-se contra o academicismo vigente e participou do Núcleo Bernardelli [1], que ajudou a consolidar o modernismo na cidade. Porém, o pintor nunca rompeu com a arte do passado, sabendo utilizar os legados da tradição e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma pintura contemporânea à sua época. Malagoli chegou a tecer críticas ao movimento de 1922: “O Modernismo desenvolveu, em muitos casos, um nacionalismo de rótulo: umas mulatas, umas bananas, uns cocos... tudo isso com formas cubistas recém-importadas de Paris” (KLINTOWITZ et al, 1985, p. 22).
Malagoli expôs pela primeira vez no Salão Nacional de 1934, ao mesmo tempo em que participava das mostras do Núcleo Bernardelli. Em 1935, recebeu menção honrosa pelo quadro “Romântica”. Já formado pela escola Nacional de Belas Artes, conviveu com vários pintores e escritores e participou de todos os Salões Nacionais, tendo recebido medalha de bronze em 1938 com “Numa Casa de Caboclo”; em 1939, medalha de prata com “Nu” e em 1942 recebeu o Prêmio Viagem ao Estrangeiro com “Repouso”. Ao mesmo tempo participou de exposições coletivas em Nova Iorque e Buenos Aires.
Nota-se em duas das obras premiadas uma grande semelhança com as obras do pintor Almeida Júnior (1850 - 1899), principalmente "Caipira Picando Fumo", de 1893, o que indica que Malagoli conhecia e admirava os grandes mestres da pintura no Brasil.
Numa Casa de Caboclo, 1938, 110.00 cm x 90.00 cm, coleção particular
Repouso, 1942, óleo sobre tela, 132.00 cm x 90.00 cm, acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA)
Em 1943 foi para os Estados Unidos, onde cursou por dois anos o Fine Arts Institution of the University of Columbia e realizou estudos em história da arte e museologia. Lá aprimorou seus conhecimentos técnicos e sua concepção de pintura, com quadros figurativos (como arlequins, por exemplo, tema recorrente em suas composições) e paisagens. Sua primeira exposição individual aconteceu em 1946 na Galeria Careen Gems de Nova Iorque, onde todos os quadros foram vendidos. No mesmo ano, voltou ao Brasil e trabalhou como professor em Juiz de Fora (MG) e depois no Rio de Janeiro, na Associação Brasileira de Desenho. Neste período, participou de várias mostras no Brasil e no exterior e recebeu vários prêmios, incluindo o Prêmio de Viagem ao País no Salão Nacional do Rio de Janeiro com o quadro “Por quê?”. Em 1951 expôs na 1ª Bienal de São Paulo.
Por Quê?, 1949, óleo sobre tela, 73.20 cm x 92.00 cm, acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA)
Em 1952, já casado com sua esposa Ruth, o pintor mudou-se para Porto Alegre (onde viveu até o fim de sua vida) a convite de Ângelo Guido (1893 - 1969), passando a lecionar no Instituto de Artes da UFRGS, onde assumiu a cadeira de Pintura. Foi um dos principais responsáveis pela revitalização do ensino nesta instituição. Quando começou a ensinar na Escola, sofreu críticas de colegas que obedeciam a princípios acadêmicos e fórmulas rígidas. Ele, no entanto, ministrava aulas calcadas na participação dos alunos e no bom relacionamento entre estes e o professor. Até 1976, ano em que se aposentou, formou toda uma geração de pintores que estão hoje entre os principais artistas gaúchos.
Fotografia de Ado Malagoli, seu assistente e suas alunas, em frente ao mural destinado ao restaurante universitário da UFRGS e pintado nas aula dos professores Aldo Locatelli e Ado Malagoli.
Ado Malagoli também é responsável por idealizar o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), criado em 1954 e inaugurado em 1957, do qual foi o primeiro diretor e responsável por trazer grandes exposições para Porto Alegre, como a de Candido Portinari (1903 - 1962), em 1958, a qual atraiu grande público e serviu para consolidar a presença do MARGS no circuito de arte local. Desde 1977, o Museu leva seu nome.
Fiel ao princípio de que o essencial para a arte é a própria arte, Ado Malagoli certa vez afirmou, em entrevista a Jacob Klintowitz, que “[...] A obra de arte surge da aptidão do artista na seleção dos seus principais elementos expressivos, isto é, da forma, cor, composição e matéria” (KLINTOWITZ et al, 1985). Como já apontamos, Malagoli procurava ser contemporâneo, porém sempre permaneceu fiel ao rigor técnico da “tradição acadêmica” da pintura; e embora, algumas vezes, os temas representados apontem um certo caráter regional, sua obra é universal.
Paisagem Gaúcha/A Usina Morta, 1974 ou 1976?. óleo sobre tela, 55.00 cm x 75.00 cm, coleção particular
O Homem do Gato Preto/O Gato Preto, 1954, óleo sobre tela, 64 x 52 cm, acervo do MARGS.
Observador atento do mundo à sua volta, o pintor preferia, como revelou em entrevista a Paulo Cabral, em dezembro de 1942, destacar o humano: “A paisagem é bela. Mas a figura humana é tudo. Seus contornos, permitindo uma interpretação humana daquilo que se pinta, os traços psicológicos, característicos de cada um, nada é mais sublime” (KLINTOWITZ et al, 1985, p. 119).
Analisando o conjunto de seu trabalho, percebemos uma obsessão pelo passado, certo saudosismo. Para José Luiz do Amaral, nas telas de Malagoli encontramos uma “[...] síntese tensa e problemática entre o que foi e o que vai ser” (KLINTOWITZ et al, 1985, p. 26). Ado Malagoli foi um homem de seu tempo, sensível aos dramas humanos, colocando-os em destaque em suas obras, como um pensador, numa dimensão quase metafísica.
Assim como afirmou o poeta Mario Quintana (1906-1994), podemos dizer que: " Somos gratos a Malagoli por nos proporcionar tantos pontos de encontro no seu mundo, tornando-o assim - também - o nosso mundo" (KLINTOWITZ et al, 1985)
BIBLIOGRAFIA
ACERVO ARTÍSTICO DA PINACOTECA BARÃO DE SANTO ÂNGELO DO INSTITUTO DE ARTES DA UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2019. Disponível em: http://www.ufrgs.br/acervoartes/. Acesso em: 03 de Jul. 2019.
ADO Malagoli. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa658/ado-malagoli. Acesso em: 03 jul. 2019. Verbete da Enciclopédia.
CORONA, Fernando. Caminhada nas artes (1940-76). Porto Alegre: Ed. da UFRGS/Instituto Estadual do Livro, 1977.
KLINTOWITZ, Jacob et al. A pintura de Ado Malagoli vista por Mario Quintana. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1985.
MORAIS, Frederico. Núcleo Bernardelli: arte brasileira nos anos 30 e 40. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982
MUSEU DE ARTE DO RIO GRANDE DO SUL ADO MALAGOLI - MARGS. Porto Alegre: MARGS, 2019. Disponível em: http://www.margs.rs.gov.br/. Acesso em: 03 jul. 2019.
ROSA, Renato; PRESSER, Decio. Dicionário de artes plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1997.
SIMON, Círio. Origens do Instituto de Artes da UFRGS: etapas entre 1908-1962 e contribuições na constituição de expressões de autonomia no sistema da artes visuais do Rio Grande do Sul. 2002. 660 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, PUC/RS, Porto Alegre, 2002. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2632/000323582.pdf . Acesso em: 03 jul. 2019.
ZANINI, Walter (Coord.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles: Fundação Djalma Guimarães, 1983. v.2.
NOTAS
[1] Fundado em 12 de junho de 1931 por um conjunto de pintores comprometidos com a oposição ao modelo de ensino da Escola Nacional de Belas Artes - ENBA, o Núcleo Bernardelli possuía como metas centrais a formação, o aprimoramento técnico e a profissionalização artísticos. Além de democratizar o ensino, o grupo almejava permitir o acesso dos artistas modernos ao Salão Nacional de Belas Artes e aos prêmios de viagens ao exterior, dominados pelos pintores acadêmicos. O nome do grupo é uma homenagem clara a dois professores da ENBA, Rodolfo Bernardelli (1852 - 1931) e Henrique Bernardelli (1858 - 1936), que no final do século XIX, insatisfeitos com o ensino da escola, mas também movidos por interesses políticos-administrativos, montaram um curso paralelo na Rua do Ouvidor, no centro da cidade do Rio de Janeiro. O Núcleo Bernardelli funcionou primeiramente no Studio Nicolas, do fotógrafo Nicolas Alagemovits, e mudou-se em seguida para os porões da ENBA, onde permaneceu até 1936. Nessa data, transferiu-se para a Rua São José e depois para a Praça Tiradentes, n. 85, até a sua extinção em 1941. Participaram do também denominado "ateliê livre", os pintores: Ado Malagoli (1906 - 1994), Bráulio Poiava (1911), Bustamante Sá (1907 - 1988), Bruno Lechowski (1887 - 1941), Sigaud (1899 - 1979), Camargo Freire (1908 - 1988), Joaquim Tenreiro (1906 - 1992), Quirino Campofiorito (1902 - 1993), Rescála (1910 - 1986), José Gomez Correia, José Pancetti (1902 - 1958), Milton Dacosta (1915 - 1988), Manoel Santiago (1897 - 1987), Yoshiya Takaoka (1909 - 1978) e Tamaki (1916 – 1979) e Edson Motta (1910 - 1981), um dos líderes do grupo. (voltar ao texto na nota 1)
COMO CITAR ESSE TEXTO
ROSSI, Elvio Antônio. Fernando Corona. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2019. Disponível em: http://www.hacer.com.br/ado-malagoli. Acesso em: [dia mês. ano].