Anônimo (Bolívia)
Asiel Timor Dei (Arcanjo Arcabuzeiro), 1680
Óleo sobre tela, 135,5 x 87 cm
Museo Nacional de Arte, La Paz, Bolívia
Uno mete el dedo en el suelo para decir por el olor en qué clase de tierra se encuentra: Yo meto mi dedo en la existencia y no huelo a nada. ¿Dónde estoy? ¿Quién soy? ¿Cómo vine aquí? ¿Qué es esta cosa llamada mundo? ¿Cuál es el significado de este mundo? ¿Quién es el que me ha arrojado dentro de él y ahora me deja aquí?... ¿Cómo vine al mundo? ¿Por qué no fui consultado... sino que fui arrojado a las filas de hombres como si hubiera sido comprado a un secuestrador, a un tratante de almas? ¿Cómo llegué a tener un interés en esta gran empresa que ellos llaman realidad? ¿Por qué debería tener interés por ella? ¿No debería ser un interés voluntario? ¿Y si me empujan a tomar parte en ella, dónde está el director?... ¿Adónde iré con mi queja? (KIERKEGAARD apud PINILLA, 1992, p. 227).
Uma figura absolutamente insólita à visão contemporânea, ao apresentar uma combinação de elementos de vestuário e atributos identitários que parecem não se ajustar a um suposto “funcionamento” do traje representado com tal realismo sobre um fundo neutro, que o ressalta. O arcanjo arcabuzeiro “ASIEL” tem, em primeiro lugar, no canto superior esquerdo do quadro o seu nome, seguido da expressão TIMOR DEI, que em latim significa o temor divino. A figura veste uma espécie de calças que haviam se tornado moda na Europa algumas décadas antes, e denominadas "’Rhinegraves’, um tipo de saia kilt-culotte, ornamentada com grandes quantidades de babados, rendas e fitas coloridas.” (JONES, 2004, p. 20, tradução nossa). Na parte superior uma larguíssima jaqueta de veludo vermelho coberto com brocados dourados, intencionalmente aberta, “revelando uma camisa de seda de corte largo e mangas com babados.” (JONES, 2004, p. 20, tradução nossa). O chapéu, igualmente conforme o estilo, com copa baixa e aba larga e afilada, apresenta plumas que combinam sua branca pureza com o nobre branco da camisa de seda e o angelical branco das asas, que aparecem por detrás da figura.
Os poucos elementos restantes são os que atribuem o caráter militar à personagem: a espada que pende por trás de seu corpo, a faixa, que corresponde a uma Insígnia própria de alguns cargos militares, civis ou eclesiásticos (PINILLA, 1992, p. 168) e o arcabuz. O gatilho foi acionado e a mecha acendeu a pólvora, que queima rápido na culatra, prestes a disparar a arma. A postura deste, assim como a de outros arcanjos arcabuzeiros do mesmo período, segue as orientações do manual militar Wapenhandelinghe voor roers musquetten ende spiessen (Exercício para as armas) (1607) de Jacob de Gheyn. (PINILLA, 1992, p. 168).
Na introdução de seu livro Ángeles apócrifos en la América virreinal, o antropólogo Ramón Pinilla coloca a questão fundamental da origem dos nomes dos anjos que surgiram nessa tradição andina tão particular. Segundo ele, nas séries de anjos pintados na América hispânica se encontram nomes de anjos inexistentes nas sagradas escrituras e tampouco reconhecidos pela igreja. Entre outras fontes iconográficas menciona como central o livro apócrifo de Enoc, um dos textos apocalípticos rabínicos pré-cristãos mais difundidos. A finalidade doutrinária de sobrepor as crenças pagãs com representações adaptadas dos ensinamentos cristãos não comporta, aparentemente, o emprego de arcanjos com nomes desconhecidos da igreja. Pinilla cita então uma outra fonte medieval de nomes de anjos proveniente do misticismo judaico, e que comporta uns setecentos nomes, o livro do arcanjo Raziel. (PINILLA, 1992, p. XXII).
O arcanjo Raziel faz parte de uma tradição judaica que talvez possa representar um papel fundamental na identificação de por que foram realizadas pinturas como esse arcanjo Asiel, o que poderia significar quando foi feito e o que ainda se pode ver hoje nele. É preciso recomeçar a olhar a imagem pelo item que inicialmente foi visto, o seu nome. Olhando com um pouco mais de atenção é possível perceber uma pequena mancha à esquerda do nome, da mesma cor das letras que o compõem. Essa mancha ainda é muito singela para dizer que se trata de um arcanjo “Rasiel”, representado por um sefardita, ou um marrano oculto no seio dos andes, embora se saiba que desde 1492, com o Decreto de Alhambra, os judeus se espalharam por várias partes do mundo. E a obra de Antonio de León Pinelo, publicada em 1656, El Paraíso en el Nuevo Mundo, pode ter contribuído para a decisão de muitos, de fugir para a América em busca de paz.
Mas, persistindo nesse desígnio, e voltando à pintura mais uma vez, agora o olhar desce pelo lado da figura, por trás da jaqueta de veludo e seus brocados dourados, para encontrar um objeto vermelho. Embora aparente ser igualmente de tecido com brocados dourados, não corresponde à vestimenta do arcanjo. Concedendo a mesma linha interpretativa a esse novo fato visual, deveria ser visto esse objeto como um livro no formato de rolo, até hoje utilizado pelos judeus para comportar, por exemplo, a Torá. Esse seria então o Livro dos Segredos, que o arcanjo Raziel entregou a Adão por incumbência de Deus, para ajudar a humanidade em sua busca pela salvação (SAVEDOW, 2000, p.13). Se, como viu Antonio de León Pinelo, o paraíso ficava no novo mundo, ele confirmou a mesma impressão que tivera Colombo, que também passou por suspeições a respeito de uma suposta origem judaica.
A representação pictórica do arcanjo arcabuzeiro Raziel, portando o Livro dos Segredos, pode ser compreendido como uma alegoria da missão dos conquistadores espanhóis que vieram ao Novo Mundo. Eles vinham, em primeiro lugar, determinados por uma ordem da corte que lhes impunha o desprendimento de cruzar o desconhecido em busca de objetivos muito concretos e lucrativos. Diante do desafio do enfrentamento usavam do arbítrio de empregar os métodos que lhes permitissem prosseguir com a tarefa que lhes fora confiada. E nas suas vozes carregavam as palavras do livro que lhes servia como o suporte ideológico para que justificassem todo o empreendimento como uma missão sagrada.
Quando Jared Diamond, em seu livro Armas, germes e aço, retrata o enfrentamento entre Pissarro e Ataualpa, e pergunta “Será que os fatores que contribuíram para o desenlace do encontro entre Ataualpa e Pissarro também estiveram presentes em outros encontros dos povos do Velho e do Novo Mundo, assim como entre outros povos?” (DIAMOND, 2001, p.74), ele usa da retórica para colocar o leitor frente à história humana. Superioridade absoluta e relativa, confiança e dissimulação, crença na sua verdade e discriminação, são alguns dos ingredientes que não fizeram parte apenas da conquista da América, mas também dos Pogroms da história.
Ao olhar uma última vez para a representação desse arcanjo, ele parece mais humano agora, não por deixar de ser um anjo, ou por portar atributos que estão historicamente mais próximos deste tempo. Ele parece mais humano porque reflete clara, ou insuspeitadamente, aquelas características simbólicas que o seu pintor quis, devotadamente, imprimir de forma indelével sobre uma tela ou esconder acintosamente. Em uma obra que viria a se tornar icônica de um capítulo espetacular da história da arte na América Latina, sem deixar de ser nunca, a mais perfeita representação da alma do criador.
REFERÊNCIAS
CARDUCHO, Vicente. Dialogos de la pintura: su defensa, origen, essencia, definicion, modos y diferencias. Madrid: Impresso Por Frco. Martinez, 1633. Disponível em: <http://books.google.com.br/>. Acesso em: 11 maio 2013.
DIAMOND, Jared. Enfrentamento em Cajamarca. In: DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 67-80.
JONES, Jennifer M. Sexing La Mode: Gender, Fashion and Commercial Culture in Old Regime France. Oxford: Berg, 2004. Disponível em: <http://books.google.com.br/>. Acesso em: 11 maio 2013.
PINILLA, Ramón Mujica. Ángeles apócrifos en la América virreinal. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.
SAÍZ, María Concepción García. Pintura y escultura colonial en Iberoamérica. In: GUTIÉRREZ, Ramón; VIÑUALES, Rodrigo Gutiérrez. Historia del arte iberoamericano. Madrid: Lunwerg, 2000. p. 63-118.
SAVEDOW, Steve (Ed.). Sepher Rezial Hemelach: The Book of the Angel Rezial. Boston: Weiser Books, 2000. Disponível em: <http://books.google.com.br/>. Acesso em: 11 maio 2013.
COMO CITAR ESSE TEXTO
FERREIRA, Cláudio Jansen. Asiel Timor Dei. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!asiel-timor-dei/cp3gc>. Acesso em: