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Dia de Verão, de Georgina de Albuquerque: uma (re)leitura 

Georgina de Albuquerque (1885 - 1962)

Dia de verão, 1920 -  O MNBA atribui c. 1926 (SHINKADO, 2012).

óleo sobre tela, 130 x 89 cm
Coleção MNBA, Rio de Janeiro

O objetivo deste texto é realizar uma "leitura de leitura", ou seja, a partir de uma leitura dada da obra em questão fazer algumas considerações sobre o trabalho da historiadora, e apresentar uma visão alternativa que venha contribuir com a abertura de possibilidades de leitura do trabalho da artista.

“Neste quadro, uma jovem afasta a cortina numa varanda ensolarada. As pinceladas rápidas que o compõem nos dão a sensação da leveza do tecido da cortina e também a sensação atmosférica de um dia de verão […]” (ANDRADE, 2003, p.299). Dessa forma Adelaide de Souza Andrade inicia sua leitura de Dia de verão, no final do capítulo A linguagem pictórica de Georgina de Albuquerque e as possibilidades expressivas de seu tempo, com o qual participa do livro Vozes femininas: gêneros, mediações e práticas de escrita, de Flora Süssekind. Em seu texto Andrade aborda formalmente a incursão de Georgina de Albuquerque às técnicas pictóricas que a aproximam do Impressionismo, com seus efeitos de luz e cor.

E explica o porquê da sensação de um dia de verão: “[…] o tratamento que Georgina de Albuquerque atribui à paisagem, que serve de pano de fundo, e à luz, que se projeta sobre os cabelos da moça, e que nos dá a ver a transparência da cortina.”. (ANDRADE, 2003, p.299). A autora observa o princípio de construção da composição baseado na contraposição de cores complementares – o vermelho e o verde – chamando a atenção para o uso da cor na estruturação da composição, e para como o dado cromático evidencia a materialidade da pintura.

Ainda sobre a obra, a autora completa: “Esta dominância da luminosidade e de uma composição de base cromática é um aspecto inovador e peculiar à técnica de Georgina de Albuquerque […]” (ANDRADE, 2003, p.300), dando crédito à artista pela ênfase na materialidade da pintura, submetida à representação de condições atmosféricas e paisagísticas cambiantes, particulares. No último parágrafo do texto lembra do exercício constante dos croquis, para os quais a artista busca representar cenas tão cambiantes e temporalmente determinadas quanto as da pintura.

Andrade conclui tentando compreender a contribuição particular de Georgina de Albuquerque, além da questão de gênero, como possuidora “[…] de uma leitura peculiar da tradição paisagística brasileira e da visulalidade [sic] impressionista.” (ANDRADE, 2003, p.300). A autora faz uma análise formalista bastante esclarecedora da obra, e a aproxima do impressionismo usando como recurso suas características em comum. Seu posicionamento é o de colocar a artista como inovadora, tanto na pintura da paisagem nacional como na interpretação do próprio impressionismo.

 

Dia de verão, de Georgina de Albuquerque, é sem dúvida uma obra marcante da arte brasileira. O trabalho en plein-air, característico do movimento do qual Claude Monet (1840-1926) foi um dos maiores expoentes, adequou-se de forma particular à artista que declarou: "[...] Sinto que nasci pintora e que para essa minha paixão estética muito concorreram as impressões da paisagem brasileira.” (COSTA, 1927). E a artista usa efetivamente em sua obra o contraste entre o vermelho da sombra cromática do primeiro plano, reforçado pela presença das flores vermelhas em segundo plano, e o verde do restante da vegetação, que de fato compõe o plano de fundo da composição.

Mas a sensação que a pintura transmite de ser um dia de verão reside num primeiro detalhe sutil, não suficientemente revelado pela análise precedente. A contraluz sempre mostrará a transparência da cortina, e a vegetação do plano de fundo por si só é insuficiente para determinar o período específico do verão. Deve-se prestar atenção ao que há de mais caro à técnica impressionista, a observação da cena in loco. O que nos diz claramente a época do ano em que estamos é o ângulo de incidência da luz solar. E essa é uma informação que tanto quanto é percebida subliminarmente, também é indicadora da grande vantagem da técnica impressionista no que diz respeito à representação da realidade.

O emprego da pincelada rápida e a rejeição ao uso do branco e do preto nas cores para formar o claro-escuro é característico da técnica impressionista. Mas o flagrante contraste entre o primeiro plano, avermelhado, e o fundo, verde, realmente estruturam a composição em profundidade, pelo “recorte” que a impressão visual provoca. Detalhe também não esclarecido pelo texto. A comparação entre a versão original da pintura, a com inversão de cores e a em preto e branco serve para percebermos este aspecto compositivo:

Na imagem com as cores invertidas o “recorte” dos planos aparece claramente, na imagem em preto e branco há uma perda considerável na profundidade, já que a construção do espaço não se deu sobre uma concepção de claro-escuro tradicional.

Mas as características formais citadas até aqui não são, absolutamente, exclusivas desta obra, isso podemos ver tanto em exemplos primevos quanto contemporâneos. Comecemos com um da primeira geração impressionista:

Claude Monet (1840-1926)

Madame Monet and Her Son, 1875

óleo sobre tela, 100 x 81 cm

National Gallery of Art, Washington

Monet pinta com uma delicadeza tocante, mas impõe uma luz dura, do verão no norte da França, e além do uso magistral que faz da pincelada para formar o céu, cria volumes no primeiro plano com a sobreposição de sombras cromáticas. O outro exemplo é de quem melhor representa a inspiração impressionista no Brasil:

Eliseu Visconti (1866-1944)

Maternidade, 1906

óleo sobre tela, 165 x 200 cm

Pinacoteca do Estado de São Paulo

Visconti é grandemente sensibilizado pelo impressionismo, e ele alia a técnica a uma poesia cromática e de texturas que nos faz lembrar de alguns dos grandes mestres do grupo original. A provocação de trazer como exemplos duas obras tão espetaculares e distintas serve para evidenciar a presença dos aspectos comuns que as unem.

Uma virtude que torna a obra Dia de verão realmente notável é o conjunto equilíbrio-movimento-volume. Vejamos uma imagem com algumas indicações:

As linhas indicadoras de um triângulo, cujo vértice coincide com o cotovelo da personagem, estabelecem uma estrutura compositiva fechada, que obriga a visão a percorrer campos opostos em circuitos que, se não se cruzam, projetam o olhar a algumas suposições de profundidade. O circuito da esquerda, ou “externo”, vem do fundo ao encontro das costas da figura, contornando todo seu perfil e tendendo a convergir para o vértice inferior do triângulo. O circuito da direita, ou “interno”, também vem do fundo, passando pela frente do rosto da figura, e então segue o movimento dos braços até encontrar a cortina, que prende e “filtra” o olhar, até este se reencontrar no espaço.

Os impressionistas rejeitaram as técnicas tradicionais de pintura por as considerarem incapazes de representar os efeitos naturais, e partiram para a rua em busca da constatação visual na sua forma imediata. Empregando as cores puras justapostas para criar os efeitos de luz e sombra, espaço e volume, proporcionaram a percepção, inclusive, da evidência da bidimensionalidade da tela. E assim escancararam as portas da modernidade, por onde passaram o fauvismo, o expressionismo, e outros “ismos”.

Em 1927 Angyone Costa elogia a técnica de Georgina de Albuquerque, mas critica sua paleta, acusando que: “Em compensação falta a esta muito de inspiração interior e, na pesquisa de efeitos de sol, tem dado à carnação de alguns dos seus nus femininos uma coloração evidentemente falsa, de leite, rosa e gelatina.” (COSTA, 1927). Bem, aqui temos o ponto de partida para a compreensão do último aspecto a ser analisado em Dia de verão, e talvez o mais importante no que diz respeito à sua contribuição para a modernidade brasileira. Georgina, assim como Monet, construía sua pintura seguindo os preceitos do impressionismo, e como Visconti, compunha com a cor as cenas de gênero, os nus, as paisagens. Mas há uma diferença em seu trabalho que está relacionado com sua paleta de cores.

Em 1906 Georgina chega em Paris com Lucílio de Albuquerque (1877 - 1939), ávida por conhecer a Arte que era feita na Cidade Luz, e aprender com ela. No Salon d'automne daquele ano houve uma grande retrospectiva do trabalho de um grande mestre que, embora contemporâneo à primeira geração de impressionistas, afastou-se deles. Primeiro física e conceitualmente, já havia percebido “que a sensação visual direta é apenas um caso particular da imaginação.” (ARGAN, 1992, p.131), depois de um longo tempo a historiografia identifica e consagra seu afastamento conceitual do impressionismo. Desse artista veremos um exemplo:

Paul Gauguin (1848-1903)

Et l'or de leur corps, 1901

óleo sobre tela, 67 x 76,5 cm

Musée d'Orsay, Paris

Georgina de Albuquerque trouxe de Paris a técnica impressionista, que emprega a beleza e a luminosidade da cor pura como ferramenta de construção, ou reconstrução, da natureza. Mas ela trouxe algo mais, e não é apenas uma aproximação ousada de sua paleta com o ousado uso que Gauguin faz da cor. Gauguin recorre ao suposto primitivo para desmascarar a soberba da cultura autorreferente (e colonialista), e usa a cor não apenas como estruturadora da composição, indicadora da percepção, mas como a manifestação presente de uma expressão primitiva (interna) ao homem. Georgina não chega a ser tão ousada quanto Gauguin. A presença de notas dissonantes, de cor, em suas telas é discreta, como convém a uma pintora digna de lecionar na Escola Nacional de Belas Artes. O questionamento insistente que a delicada personagem de seu quadro faz é: pode uma obra realizada tão distante da Luz provocar uma grande transformação?

REFERÊNCIAS

 

 

ANDRADE, Adelaide de Souza. Croquis e intensificações da luz: A linguagem pictórica de Georgina de Albuquerque e as possibilidades expressivas de seu tempo. In: SÜSSEKIND, Flora. Vozes femininas: gêneros, mediações e práticas de escrita. Rio de Janeiro: 7letras, 2003. p. 293-300. Disponível em: <http://books.google.com.br>. Acesso em: 05 abr. 2012.

 

 

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia Das Letras, 1992.

 

 

COSTA, Angyone. A Inquietação das abelhas. Rio de Janeiro : Pimenta de Mello & Cia. , 1927, p. 18. In: ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTES VISUAIS. Albuquerque, Georgina de (1885 - 1962). Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br>. Acesso em: 07 abr 2012.

 

 

ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTES VISUAIS. Visconti, Eliseu (1866 - 1944). Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br>. Acesso em: 07 abr 2012.

 

 

MATTOS, Adalberto P. O Salão de 1926. Illustração Brasileira, ano VII, n. 73, set. 1926, n/p. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net>. Acesso em: 06 abr 2012.

 

 

MOTTA, Flávio L.. Art-nouveau, modernismo, ecletismo e industrialismo. In: ZANINI, Walter. História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983. p. 452-484.

 

 

MUSÉE D'ORSAY (Paris). Paul Gauguin: Et l'or de leur corps. Disponível em: <http://www.musee-orsay.fr>. Acesso em: 08 abr. 2012.

 

 

NATIONAL GALLERY OF ART. Woman with a Parasol - Madame Monet and Her Son. Disponível em: < http://www.nga.gov>. Acesso em: 07 abr 2012.

 

 

PEDROSA, Mário. Visconti diante das modernas gerações. In: _____. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. São Paulo: Edusp, 1998. p.119-133. Disponível em: <http://books.google.com.br>. Acesso em: 08 abr. 2012.

 

 

RIBEIRO, Fléxa. As Belas Artes na exposição. II - Arte contemporânea: pintura. O Paiz, Rio de Janeiro, 27 nov. 1922, p.1. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net>. Acesso em: 07 abr 2012.

SHINKADO, Mary Komatsu. Publicação on-line [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por biblioteca@mnba.gov.br em 09 abr 2012.

 

 

VALLE, Arthur. Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Academia Julian (Paris) durante a 1ª República (1890-1930). 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 3, nov. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/academia_julian.htm>. Acesso em: 07 abr 2012.

 

 

WALTER ZANINI (Org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles, 1983.

COMO CITAR ESSE TEXTO 

FERREIRA, Cláudio Jansen. Dia de Verão, de Georgina de Albuquerque: uma (re)leitura. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/diadeverao>. Acesso em: [dia mês. ano].

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