Uma mulher de longos cabelos negros repousa sorridente em uma banheira cheia d’água, enquanto seu olhar se dirige para alguém que não vemos. Seria a sedutora Vênus, deusa romana do amor, banhando-se enquanto observa seu jovem amante Adônis? Talvez seja Betsabá em seu banho, enquanto é observada pelo olhar cobiçoso de Davi, rei de Israel? Ou ainda uma odalisca, em um exótico harém de um sultão otomano? Não. A mulher desta imagem parece absolutamente comum. Faltam-lhe os traços de beleza idealizada que estamos acostumados a associar à Vênus. E onde estariam os elementos de cenário típicos que se espera de um harém oriental, para que possamos considerá-la uma odalisca? Não, estamos definitivamente diante de uma mulher sem nada de especial, em um ambiente vulgar, que poderia pertencer a qualquer casa do século XIX. Estamos diante de uma “escandalosa” pintura de uma “mulher real” nua, sem idealizações, sem contextualizações narrativas mitológicas, religiosas ou literárias. Uma pintura erótica destinada a jamais ser exposta ao público, a ficar escondida atrás de cortinas e em salas íntimas de artistas ou colecionadores particulares. Uma pintura que, talvez por estas características, pôde se permitir ser mais naturalista, menos preocupada em procurar uma beleza idealizada, encontrando assim a sedução presente em uma simples cena de uma pessoa comum em uma situação íntima e cotidiana.
A imagem em questão é o óleo sobre tela pintado por Prilidiano Pueyrredon, um dos principais artistas argentinos do século XIX, conhecida pelo título El Baño, realizada no ano de 1865 e hoje integrante do acervo do Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires. A carreira de Pueyrredon é marcada por uma grande produção de retratos, bem como por paisagens do pampa argentino e margens do Rio da Prata, em muitas das quais representa a figura e os costumes do gaucho, apresentados com a típica visão romântica do século XIX. Presente na arte de diversos países, essa idealização de um tipo puramente nacional correspondia a um anseio de consolidação de uma identidade para as nascentes nações latino-americanas. Por outro lado, Pueyrredon também pintou nus femininos, sendo que, em alguns deles, percebe-se um maior naturalismo em relação à grande maioria da sua produção. Feitos para um público seleto ou para si próprio, este nus femininos tinham circulação bastante restrita, sendo menos conhecidos naquela época que seus retratos e paisagens. A obra El Baño, por exemplo, jamais foi exibida publicamente enquanto o artista esteve vivo, tendo deixado seu ateliê somente em 1870, ano de sua morte. Em 1871, teria passado às mãos de Santiago Calzadilla, amigo do pintor, tendo sido doada ao Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires em 1907, por Josué Moreno (MARTÍNEZ; LUKIN, 2008, p. 137).
A pintura é estruturada em uma grande diagonal, que divide a tela em dois triângulos, partindo do canto superior esquerdo e indo até o canto inferior direito. A metade triangular superior criada por esta diagonal, de menor tamanho, corresponde ao fundo da pintura, em tom escuro. Este tom neutraliza o fundo do quadro e cria um forte contraste com a metade triangular inferior da tela, enfatizando a figura da mulher e da banheira, que aparecem em tons claros e brilhantes. A posição da banheira define a orientação desta diagonal principal, com a cabeça da mulher situada no canto superior. É uma banheira de cor branca, na qual se vê um tecido fino, também de cor branca, posicionado sobre ela, na parte inferior, que chega a tocar a água, tornando-se levemente transparente. Dentro da banheira, a mulher encontra-se com corpo imerso na água a partir da metade do seu torso, logo abaixo dos seios nus. O artista realiza um belo tratamento na representação da água, permitindo que se vislumbre o corpo da mulher submerso e por baixo do tecido molhado, aumentando a tensão erótica presente na cena. A luz incide pelo lado direito da tela, projetando a sombra da mulher contra o fundo branco da banheira. Longe de obscurecer a imagem, as sombras criadas aderem ao corpo da mulher, criando uma sensação de volume e tangibilidade.
O rosto da mulher está voltado para o lado esquerdo da tela, dando a impressão de que ela olha para alguém que o espectador não pode ver. Ela sorri, parecendo morder levemente o lábio inferior, com uma expressão de feliz cumplicidade e intimidade para com este personagem misterioso. Esta expressão confere ao quadro uma interessante dualidade: ao mesmo tempo em que o espectador é incluído nesta cena erótica como uma espécie de voyeur, é dela excluído pois “[…] não pode rivalizar com o sujeito que está sugerido dentro da obra por meio da monopolização daquele olhar.” (MARTÍNEZ; LUKIN, 2008, p. 141). A expressão ao mesmo tempo alegre e marota da mulher, que parece não se importar com a presença deste personagem no recinto, mesmo estando nua em uma banheira, cria uma ligação íntima entre os dois, que coloca o espectador em uma situação de intruso, como se a estivesse espionando por um buraco na fechadura da porta.
Prilidiano Pueyrredon (1823-1870)
La Siesta, 1865
Óleo sobre tela, 100 x 122,5 cm
Coleção privada
Especula-se que a mulher representada possa ser a criada de Pueyrredon, conhecida como La Mulata, com quem ele poderia ter mantido um relacionamento amoroso. Em anotação da época de doação da obra ao Museo Nacional de Bellas Artes de Buenos Aires, o quadro é referido com o título La mulata en el baño (MARTÍNEZ; LUKIN, 2008, p. 137). Considerando-se tal hipótese, muitas questões começam a tomar forma para se compreender a obra. Seria Pueyrredon o personagem misterioso que ela olha? Seria a obra um retrato de sua amante, que Pueyrredon pintou para si mesmo? Uma mulher de fisionomia semelhante também aparece em outra obra de nu erótico do artista, La Siesta (figura acima), com características formais similares a El Baño. Se tais ilações são realidade ou não, talvez não se possa saber com certeza. No entanto, o que parece certo é que a obra foi pintada por desejo do artista, para si mesmo, uma vez que jamais foi exposta ou deixou seu ateliê enquanto ele viveu. E o fato de ter sido concebida como uma peça particular, não destinada à exibição, pode ter permitido ao artista ousar além do que seria aceito em uma encomenda ou obra pública, pelo menos naquele momento e naquele lugar.
Mas somente esse fato em si é capaz de explicar o maior naturalismo da obra? Por que teria Pueyrredon sentido vontade de ousar uma aparência mais realista a este nu feminino que pintava para si mesmo, criando uma obra de características formais destoantes não apenas de sua própria produção, mas da arte argentina do período como um todo, encontrando paralelos apenas na arte europeia que estava sendo feita naquele mesmo momento? Se a maior parte da produção do pintor se caracteriza pela visão romântica e idealista, por que ele teria sido menos romântico e idealista quando pintou sua possível amante para si mesmo? O fato de a pintura ter sido feita para seu próprio ambiente privado parece ter sido fundamental, mas outras possibilidades podem ser consideradas quando se analisa biografia e a formação do artista.
Prilidiano Pueyrredon (1823-1870)
Un alto en la pulpería, c. 1860
Óleo sobre madeira, 24 x 32,6 cm
Buenos Aires, Museo Nacional de Bellas Artes
Prilidiano Pueyrredon era filho de Juan Martín de Pueyrredón (1776-1850), militar e figura de destaque no cenário político da Argentina no início do século XIX. Em 1835, ainda com doze anos, Prilidiano se muda com sua família para Paris. Em 1841, reside no Rio de Janeiro, onde tem contato com artistas da Academia Imperial de Belas Artes. Retorna a Paris onde estuda engenharia, dedicando-se à pintura nas horas vagas. Reside em Buenos Aires de 1849 a 1851, quando volta a Paris para aperfeiçoar seus estudos. Em 1854, Prilidiano Pueyrredon se estabelece definitivamente em Buenos Aires, iniciando sua carreira de pintor e arquiteto. Transformou-se em um retratista requisitado e pintor de paisagens campestres, sendo um dos artistas que explorou e ajudou a consolidar a figura do gaucho. Em termos formais, sua produção segue muitos dos cânones clássicos das academias de arte francesas do século XIX. As paisagens e cenas rurais de costumes apresentam um espírito romântico de idealização, uma atmosfera bucólica na qual se percebe a busca pelo elemento pitoresco do ambiente, como se pode ver em sua obra Un alto en la pulpería (figura acima).
Prilidiano Pueyrredon (1823-1870)
Retrato de Manuelita Rosas, 1851
Óleo sobre madeira, 199 x 166 cm
Buenos Aires, Museo Nacional de Bellas Artes
Na sua produção retratística, ainda que intrinsicamente atrelada ao modelo real, também se percebem elementos de idealização e respeito às convenções do gênero. O célebre Retrato de Manuelita Rosas (figura acima) serve como exemplo das diferenças de tratamento do corpo feminino em uma obra encomendada e destinada à aceitação pública e uma obra como El Baño.
Gustave Coubert (1819-1877)
Le Sommeil, 1866
Óleo sobre tela, 135 x 200 cm
Paris, Petit Palais
O fato de Pueyrredon ter estudado na França pode oferecer algumas pistas sobre o realismo presente nesta obra, ainda que ausente na maior parte de sua produção. A comparação com o realismo de Gustave Courbet (1819-1877) é tentadora, ainda mais quando se percebe a similaridade entre a obra de Pueyrredon, La Siesta, com Le Sommeil (figura acima), de Courbet. No entanto, ainda que tal influência seja possível, há que se considerar que a visibilidade na época da pintura realista de Coubert provavelmente fosse muito menor que a de artistas acadêmicos, que frequentavam os grandes salões e tinham reconhecimento oficial. Além disso, grande parte da obra do pintor francês é posterior ao retorno de Pueyrredon a Buenos Aires (1854), sendo as obras eróticas mais conhecidas dos dois artistas praticamente simultâneas. Mesmo que o contato com as primeiras pinturas realistas de Courbet pudesse ter influenciado Pueyrredon, caberia ainda perguntar por que esta influência teria se dado apenas no caso do nu feminino, uma vez que o pintor argentino poderia ter feitos experimentos mais realistas para si mesmo também em outros gêneros?
Édouard Manet (1832-1883)
Le déjeuner sur l'herbe, 1863
Óleo sobre tela, 208 x 264 cm
Paris, Musée d'Orsay
Talvez as respostas passem menos pela questão da pintura realista e mais pela questão do gênero do nu feminino. Este gênero era bastante comum na pintura acadêmica francesa, embora devesse estar associado, via de regra, a uma narrativa de variadas inspirações (mitológica, religiosa, histórica, literária, alegórica, etc.), bem como buscar uma beleza feminina idealizada voltada à satisfação do olhar masculino. O nu feminino em um contexto moderno ou com mulheres reais era motivo de escândalo, como bem demonstrou o pintor Édouard Manet (1832-1883), com sua obra Le déjeuner sur l’herbe (figura acima), que causou alvoroço quando exposta em 1863. Se a formação artística de Pueyrredon tinha suas próprias regras para o gênero do nu, que o próprio artista seguiu em algumas obras, por que teria ele se afastado delas em El Baño?
Julien Vallou de Villeneuve (1795-1866)
Reclining Nude, 1851-1853
Fotografia, 12.3 x 16.1 cm
New York, Metropolitan Museum of Art
Alexandre Cabanel (1823-1889)
La Naissance de Vénus, 1863
Óleo sobre tela, 130 x 225 cm
Paris, Musée d’Orsay
Uma das hipóteses é a influência de fotografias eróticas que circulavam em Paris na década de 1850, quando Pueyrredon ainda residia na cidade (MARTÍNEZ; LUKIN, 2008, p. 143). Surgida na década de 1830, a fotografia rapidamente se difundiu e se tornou um instrumento auxiliar no trabalho de pintores do século XIX, sendo que a influência da imagem fotográfica na pintura foi se tornando cada vez mais acentuada com o passar dos anos. Neste contexto, a fotografia erótica também foi um instrumento de estudo para o gênero pictórico do nu feminino. Na arte acadêmica, isso pode ser percebido, por exemplo, na similaridade das poses na fotografia Reclining Nude de Julien Vallou de Villeneuve (1795-1866) e na pintura La Naissance de Vénus de Alexandre Cabanel (1823-1889), consagrado pintor acadêmico francês (figuras acima). Esta relação também ocorreu na pintura realista de Courbet, que se utilizou também de uma fotografia do mesmo Villeneuve como modelo para sua obra Les Baigneuses (figuras abaixo).
Julien Vallou de Villeneuve (1795-1866)
Étude d’après nature, nu n°1906, modele pour «Les Baigneuses», 1854
Fotografia, 16,5 x 12,3 cm
Paris, Bibliothèque nationale de France
Gustave Courbet (1819-1877)
Les Baigneuses, 1853
Óleo sobre tela, 227 x 193 cm
Montpellier, Musée Fabre
Se Cabanel se utiliza da pose fotográfica e idealiza o corpo de sua Vênus, Courbet parece ir no sentido inverso, acentuando os aspectos mais realistas do corpo da modelo fotografada, afastando-se formalmente do nu clássico e acadêmico. De qualquer forma, o que muitas destas fotografias permitem perceber é que a imagem masculina do corpo feminino erotizado no século XIX nem sempre correspondia aos padrões do nu idealizado da pintura acadêmica, conforme é possível perceber nas figuras abaixo. A fotografia erótica, “[…] revela o verdadeiro gosto masculino da época, e ele não tendia às silhuetas tubulares e andróginas.” (DAZZI, 2012, p. 6). Mulheres de quadris largos, com nádegas redondas e proeminentes, acentuadas por cinturas finas são recorrentes na fotografia erótica francesa do século XIX, mostrando que, de certa forma, o gosto erótico masculino da época se associava a um determinado tipo de corpo feminino diferente do modelo idealizado na pintura acadêmica. Ainda que muitas destas fotos tentem se aproximar da pintura imitando elementos de cenário e tentando criar um contexto narrativo, seu caráter erótico se sobressai, e o que era para servir apenas de modelo de estudo parece acabar influenciando a visão dos artistas, tornando-se um gênero e modelo de composição. De certa forma, a fotografia erótica pode ter condicionado o olhar de artistas e consumidores de arte, associando o erotismo a uma representação mais realista do corpo da mulher.
Pueyrredon provavelmente teve contato com fotografias deste tipo durante o tempo que morou em Paris, uma vez que elas parecem ter circulado em distintos ambientes artísticos. Dessa forma, apesar de sua formação clássica acadêmica, o seu olhar do nu erótico talvez pudesse estar mais associado aos elementos destas fotografias do que aos da pintura, ou pelo menos dos padrões de pintura que ele conhecia. No momento em que se sentou para pintar sua amante nua, uma imagem que ele provavelmente via carregada de erotismo, as soluções formais que podem ter-lhe vindo à mente não foram às da pintura acadêmica, mas as das imagens que ele associava com maior força a este clima erótico: fotografias de mulheres reais em ambientes íntimos e com pouco ou nenhum contexto narrativo. Pueyrredon talvez não conseguisse ser erótico como desejava sendo acadêmico e pintando uma beleza idealizada em um contexto narrativo falso. Talvez a imagem que quisesse eternizar daquela mulher que despertava seu desejo estivesse muito mais próxima das fotografias que ele conhecia, dispensando idealizações e contextos, e exigindo um maior realismo tanto na aparência da mulher, quanto do cenário. Tal imagem dificilmente seria aceita por um cliente da alta sociedade argentina e provavelmente traria algum tipo de prejuízo a sua reputação de artista reconhecido e filho de uma importante figura histórica do país se fosse exposta. Mas a pintura era somente para ele e não precisava se adequar ao gosto ou expectativa de um cliente ou da crítica. La Mulata está olhando para alguém, provavelmente o próprio artista, e conectando-se com ele para além de qualquer dúvida. O espectador a vê, mas sabe que ela não se importa com ele, que a atenção dela é somente para este personagem oculto. Dessa forma, o caráter privado da obra parece se confirmar não apenas por sua história, mas também por suas características formais.
Assim, em plenos anos 1860, surgia em Buenos Aires uma pintura que, de certa forma, estava em sintonia com muitas obras do mesmo gênero produzidas em Paris naquele mesmo momento histórico, mas que permaneceria restrita ao ateliê do pintor até sua morte e só chegaria a um museu público em 1907. Nas décadas seguintes à morte do pintor, a pintura argentina e latino-americana em geral começaria a experimentar uma maior aproximação com o naturalismo, modificando, aos poucos, os rígidos padrões acadêmicos. Em 1887, outro pintor argentino, Eduardo Sívori (1847-1919), apresentaria ao público francês e argentino um nu feminino de uma criada, com sua obra El Despertar de la Criada (figura ao lado), causando escândalo nos dois lados do Atlântico. Mas isso já é outra história.
Eduardo Sívori (1847-1919)
El Despertar de la Criada, 1887
Óleo sobre tela, 198 x 131 cm
Buenos Aires, Museo Nacional de Bellas Artes
REFERÊNCIAS
ARTEAGA, Alicia de. El baño: cómo ver la obra. La Nación, Buenos Aires, 27 jul. 2003. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/513283-el-bano-como-ver-la-obra>. Acesso em: 04 maio 2013.
DAZZI, Camila. O nu feminino na Argentina e no Brasil: pinturas de Eduardo Sívori e Rodolpho Amoêdo. Artciencia.com: Revista de Arte, Ciência e Comunicação, ano 7, n. 14, set. 2011/fev. 2012. Disponível em: <http://www.artciencia.com/index.php/artciencia/article/view/33/93>. Acesso em: 04 maio 2013.
MARTÍNEZ, Andrea C. Peresan; LUKIN, Aimé Iglesias. Desnudo subjetivo, aproximaciones contextuales y plásticas a la obra El baño de Prilidiano Pueyrredón. AdVersuS: Revista de Semiótica, Buenos Aires, v. 5, n. 12-13, p. 133-151, ago./dez. 2008. Disponível em: <http://www.adversus.org/indice/nro12-13/articulos/07V1213.html>. Acesso em: 04 maio 2013.
PRILIDIANO Pueyrredón. In: MUSEO Pueyrredón: [site oficial]. Buenos Aires, 2011. Disponível em: <http://museopueyrredon.org.ar/museo/prilidiano-pueyrredon>. Acesso em: 04 maio 2013.
Também publicado em O Mundo das Nuvens, blog do autor:
https://omundodasnuvens.wordpress.com/2014/01/11/leitura-de-imagem-el-bano-de-prilidiano-pueyrredon/