Grupo Galpão:
pensamento e obra
Um grupo para ser considerado com tal deve possuir características distintivas e constantes. No caso do teatro, isso também deve acontecer: alguma particularidade precisa ser mantida para possibilitar a identificação. O Grupo Galpão, de Minas Gerais, possui uma trajetória de vinte e nove anos e, durante esse tempo, fez uso de linguagens diversas, alterou sua estática e, inclusive, seu processo de trabalho. Em vista disso, o que o torna um grupo? Através da observação de seus espetáculos, desde sua concepção até a encenação para o público, percebe-se que permanecem sua crença no papel social do teatro e sua busca pelo aprimoramento profissional. Para comprovar sua afirmativa, faz-se uma exposição sobre a construção da peça Romeu e Julieta.
Apresentação da peça Romeu e Julieta pelo Grupo Galpão em Ouro Preto (MG), 2012.
Como tudo começou e a transformação do processo de trabalho
O Grupo Galpão foi fundado, em 1982, por atores que participaram da oficina de teatro de rua ministrada pelos diretores George Froscher e Kurt Bildstein, do Teatro Livre de Munique, realizada no Teatro Marília em Belo Horizonte. São eles Teuda Bara (1941-), Eduardo da Luz Moreira (1961-), Wanda Fernandes (1954-1994) e Antônio Edson (1955-). Dessa oficina resultou a peça A Ama Boa de Setzuan, de Bertold Brecht. Os diretores alemães trabalharam com improvisação, teatralização dos objetos e exercício de fadiga, e eram seguidores das idéias de Brecht e Grotowski. Mais do que o aperfeiçoamento técnico, o benefício maior do contato do grupo com aqueles profissionais foi a tomada de consciência da necessidade de levar a sério a profissão de ator, de ter responsabilidade e dedicação. Já na primeira montagem, os artistas trabalharam com elementos que se tornariam suas marcas registradas: as pernas de pau, o circo, desfiles de rua, figurinos e cenário despojados. Andar de pernas de pau seria uma metáfora da convivência e superação das situações de limite e de risco.
A primeira produção do Grupo foi A Noiva Não Quer Casar, estreado em novembro de 1982, cujo elenco era Wanda Fernandes, Eduardo Moreira, Fernando Linares e Mauro Lúcio. Essa peça foi escrita coletivamente, aplicou as habilidades circenses e improvisações onde “tudo valia”. O trabalho de rua do Galpão é marcado pelo improviso e pelo grande apelo popular, enquanto que o realizado em palco profissional, pelo refinamento da linguagem e pelo detalhamento. O Grupo foi um dos grandes responsáveis pela campanha de afirmação e popularização do teatro de rua em Belo Horizonte. O jornalista Marcelo Procópio escreveu, em 1984: “O Grupo Galpão difere de quase tudo feito por aí. Não que esteja revolucionando. Na verdade, estão colocando os pés no chão e fazendo um trabalho sério, irreverente, infantil e adulto e, ao mesmo tempo, gozadíssimo. E melhor, conseguem se comunicar e prender um público não acostumado ao teatro; Galpão é teatro de rua” (BRANDÃO, 1999, p.39).
O início da carreira do Galpão foi marcado pelo processo de criação radicalmente coletivo, no qual todos participavam igualmente. Entretanto, isso se modificou em 1985 devido às dificuldades encontradas e o fracasso de Arlequim, Servidor de Tantos Amores, baseada no texto de Carlo Goldoni, Arlequim, Servidor de Dois Amos. Naquele ano, os artistas fizeram uma oficina com a italiana Ariel Genovese, na qual estudaram metodologias da commedia dell’arte do uso do corpo, da voz e de máscaras em situações genéricas. Exploraram os jogos entre o ator e o público e entre os atores. Apesar de haver a coordenação de Eduardo Moreira nas improvisações, o grupo não conseguiu obter um trabalho harmonioso e bem acabado, e isso se refletiu na recepção do público e da crítica. Ao perceber que não conseguiu encontrar o tom correto por meio de improvisações ilimitadas, sem direcionamento pré-definido, o Galpão abandonou a ideia de criação coletiva e passou a contar com diretores convidados.
Romeu e Julieta – o Shakespeare mineiro
A peça Romeu e Julieta, dirigida por Gabriel Villela, foi um marco na consolidação do Galpão na cena teatral brasileira. É a encenação do texto clássico transformada pela fusão do universo elizabethano de William Shakespeare com o mundo das narrativas de Guimarães Rosa e da cultura popular mineira, principalmente, o cancioneiro. Inês Peixoto foi a atriz convidada, e Arildo Barros, o assistente de direção.
Em março de 1992, o Galpão realizou workshops das quais surgiram cinco possibilidades de textos para sua próxima montagem: Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Romeu e Julieta, de William Shakespeare e Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa. A escolha de Gabriel foi o texto de Shakespeare que, na verdade, já havia estado em projeto de 1987.
A história dos dois amantes deveria ser o eixo central, a base que permitiria tratar da inserção do universal, do clássico, no particular da cultura local. No primeiro semestre de 1992, o grupo viajou para Ouro Preto a fim de estudar a arte local e as potencialidades do texto. A confecção dos figurinos, a cargo de Luciana Buarque, e cenários foram a primeira coisa a ser feitas com materiais de que já dispunham na sua sede, exceto a sombrinha adquirida de um vendedor ambulante.
Os ensaios começaram em abril, acompanhados pelo dramaturgo Carlos Antônio Leite Brandão, quem ministrou aulas sobre o autor inglês e seu contexto histórico. Tanto o texto quanto os demais aspectos da peça iam surgindo ao longo do processo. Os atores frequentaram aulas de aeróbica, com Júnia Portilho, de esgrima, com Maki, de instrumentos e canto, com Arildo Barros, da dança de época sabaranda, com Paula Martins. Enquanto isso, Gabriel Villela pesquisava cantigas de roda e Carlos Brandão relia Grande Sertão: Veredas na busca dos trejeitos da linguagem sertaneja.
Apresentação da peça Romeu e Julieta pelo Grupo Galpão em Ouro Preto (MG), 2012.
O diretor se preocupava em procurar outras montagens da obra de Shakespeare. Ele analisou o Romeu e Julieta de George Cukor, os comentários de Peter Brook em Shakespeare: fonte e utopia e os depoimentos sobre Sonhos de Uma Noite de Verão. Os estudos de Gabriel resultaram em novas maneiras de trabalhar os corpos dos atores, aplicando os conceitos de precipitação, instabilidade e exílio. Ele desenvolveu exercícios, como o da corda bamba, no qual se deveria andar sobre fitas elásticas dispostas no chão. A linguagem circense inspirou o uso de pernas de pau, guarda-chuvas, sombrinhas, malabarismo e a composição do clown, no caso dos figurinos e da maquiagem. Tudo isso culminou em um espetáculo caracterizado pela liberdade cômica aliada a um enredo trágico, com o qual o público poderia se identificar pelas canções e visualidade populares.
As dificuldades financeiras prejudicaram, em certo momento, o trabalho de preparação, entretanto Gabriel consegue resgatar o ânimo da equipe ao propor o exercício da trave. Todos os integrantes do grupo deveriam caminhar sobre a trave, suspensa a três metros de altura, dizendo o texto, a fim de promover reações e sentimentos provocados pelo desequilíbrio. Em seguida, o Galpão viaja para a pequena cidade de Morro Vermelho, e lá realiza ensaios abertos. Os artistas puderam sentir o poder de teatro de rua, seus corpos fundiam-se com a paisagem, as crianças cantavam as músicas do espetáculo, enfim, a população interagia e interferia no trabalho. O contato com o povo interiorano influenciou, inclusive, modificações de peças de figurino. A dramaturgia final preservou passagens do texto original e apresentava falas expressivas, o que explica como conseguiram captar a atenção do público, na rua, por uma hora e meia. A estréia aconteceu, sob chuva, em Ouro Preto, e teve uma platéia considerável que acompanhou entusiasmada e atenta toda a trama.
Romeu e Julieta foi um dos maiores sucessos de Galpão. A combinação da cultura popular mineira com o clássico inglês foi bem recepcionada pelo público e pela crítica. A diretora do Centro de Estudos Shakespeareanos, Professora Aimara Cunha, declarou ao diretor Gabriel Villela que “vocês estão trazendo Shakespeare para o lugar de onde ele nunca deveria ter saído: o mundo popular da rua”. O Grupo Galpão excursionou pelo Brasil e pelo exterior com o espetáculo. Na Inglaterra, ele foi encenado em uma reconstrução do Wooden O. Os diretores do Globe Theater ficaram empolgados com a renovação de Shakespeare, às vezes, tão carregado de uma visão classicista e fechada a novas interpretações.
Entre as críticas positivas está a escrita por Nélson de Sá, na Folha de São Paulo, de 15 de setembro de 1992:
O Romeu e Julieta de Gabriel e Villela e do Grupo Galpão foi tão carregado de ingenuidade e criação que o lugar-comum da trama desapareceu. E foi tudo, por assim dizer, uma brincadeira de rua. Os atores não paravam de fazer jogos e gozações, as músicas pareciam coisas de criança, os figurinos eram daquelas peças de garagem. Daí a choradeira da platéia. Este Romeu e Julieta é um amor tão juvenil e brincalhão que vai derrubando todas as resistências (SÁ, 1992 apud BRANDÃO, 1999, p.114).
Apresentação da peça Romeu e Julieta pelo Grupo Galpão no Globe Theater, em Londres, reconstrução de 1997 do teatro inaugurado em 1599 e destruído por um incêndio em 1613, local onde muitas das as peças de Shakespeare foram encenadas durante a vida do autor.
Fonte: Site do Grupo Galpão
No dia 23 de setembro de 1992, no Estado de Minas, Marcelo Castilho Avelar falou sobre a encenação na Praça do Papa, em Belo Horizonte:
Ao narrar com arquétipos brasileiros uma história que pertence ao imaginário ocidental, diretor e atores assumiram a difícil tarefa de contar, na verdade, a história dos sentimentos de seus espectadores. O resultado, entre risos e lágrimas, levaria ao êxtase Melpomene e Tália, musas do teatro: é impossível deixar de sentir, depois da apresentação, as cores do mundo mais claras, o ar mais transparente, a realidade mais leve (AVELLAR, 1992 apud BRANDÃO, 1999).
A jornalista Clara Arreguy tratou sobre os efeitos no público da encenação, em texto publicado no Estado de Minas:
As apresentações de Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, sempre em espaços públicos, abertos e gratuitos, para pequenas ou grandes multidões, não se tornaram apenas momentos de grande deleite estético para os amantes da arte teatral – assumiram também o status de eventos cívicos, ocasiões de confraternização para a população [...] Esse encontro entre a comunidade local onde a trupe está se apresentando e os fãs do grupo, que estão em todas, inaugura uma nova celebração, a cada espetáculo. Grandes artistas vão aonde o povo está. Onde estão os grandes artistas, o povo também vai (ARREGUY, 1992 apud BRANDÃO, 1999).
O projeto por trás da obra
O Grupo Galpão estabeleceu diretrizes para o seu trabalho já na sua criação. Os objetivos expostos na sua proposta de trabalho são:
1. Dar continuidade ao trabalho iniciado em Diamantina;
2. Tentar desenvolver as técnicas aprendidas e ampliá-las adaptando-as a nossa realidade cultural.
3. Facilitar o acesso á cultura, ao teatro popularizando-o.
4. Procurar, através do teatro de rua, uma forma mais direta e espontânea de comunicação com o público.
5. Tentar desenvolver uma estrutura de trabalho na qual exista a possibilidade de participação do público no espetáculo, criando assim um constante desafio e uma constante provocação, tanto por parte dos atores quanto do público;
6. “Desinstitucionalizar” o palco;
7. Buscar novas alternativas de espaço teatral, uma vez que nisso consiste em um dos maiores problemas da nossa realidade cultural regional.
(MOREIRA et al.,1982 apud BATISTA, 2010).
Natália Cristina Batista (2010) procurou desvendar a ideologia do grupo através de entrevistas com seus integrantes. Ela encontrou valores comuns, com a responsabilidade com o público e a democratização do acesso ao teatro. Os artistas têm consciência da repercussão social de seu trabalho e gostariam de contribuir para mudanças na sociedade. Não só o trabalho de caráter coletivo e político interessam ao Galpão, mas também o desenvolvimento de novas linguagens e o aprimoramento da técnica teatral.
A universalidade do “Shakespeare galponiano” é abordada por Fernanda Miranda Alves Costa (2008). A autora afirma que a montagem do grupo mineiro permite a identificação do público tanto brasileiro quanto inglês pois emprego elementos das duas culturas. O mineiro pode reconhecer músicas do seu folclore nas canções do espetáculo como Flor, Minha Flor. A plateia britânica prontamente reconhece a obra de um de seus maiores dramaturgos, William Shakespeare. O Galpão consegue defender a cultural popular de ambos os países, e, dessa forma, atingir o público de outras nacionalidades.
Assim como Batista (2010), Mariana de Souza e Alexandre Carrieri (2011) também reconheceram como crenças do grupo a ideia de que arte é uma forma de agir no mundo e que a prática artista está vinculada a um posicionamento político. “A arte não seria uma forma de homogeneização de valores, mas sim um instrumento para gerar provocação e questionamento na vida dos espectadores” (CARRIERI, SOUZA, 2011, p.392). A profissionalização e o trabalho em grupo também despontam como metas a alcançar.
Quanto a questão de apropriação de elementos populares, Juan Villegas considera uma das tendências na teatralidade latino-americana contemporânea e que, muitas vezes a uma concepção idealizada e lúdica. Isso pode ser encontrado na encenação do Galpão, que não busco necessariamente uma crítica social, pelo menos não de forma explícita e pontual. Villegas aborda a construção de imaginários a partir de elementos de várias culturas, uma marca da multiteatralidade da América Latina. A adaptação de Shakespeare à realidade cultural brasileira é uma evidência dessa constatação.
O processo de Romeu e Julieta revela, por toda pesquisa e exercícios envolvidos, a preocupação dos artistas em desenvolver suas habilidades como atores, diretor e dramaturgo. A recepção do espetáculo, tratada nos textos jornalísticos, parece ser a almejada pelo Galpão: o público se emocionou e usufruiu ao assistir a peça. A estática mesclando o texto clássico e a linguagem popular foi de grande êxito. Carlos Brandão ainda afirma que o contato da população com o trabalho de rua do Grupo ocasionou o crescimento de espectadores na região, inclusive do teatro convencional.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Natália Cristina. Descortinando o Grupo Galpão: a construção de uma ideologia a partir da História Oral. In: XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio – Memória e Patrimônio, UNIRIO, Rio de Janeiro, 19 a 23 de julho de 2010.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão: 15 Anos de Risco e Rito. Belo Horizonte: Grupo Galpão, 1999.
CARRIERI, Alexandre de Pádua, SOUZA, Mariana Mayuni Pereira de. Racionalidades no Fazer Artístico: Estudando A Perspectiva de Um Grupo de Teatro. RAE, São Paulo, v. 51, n.4, p. 382-395, julho/agosto de 2011.
COSTA, Fernanda Miranda Alves. Grupo Galpão: A Mineiridade na Cena Contemporânea. In: IVENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador, 28 a 30 de maio de 2008.
GRUPO GALPÃO. [Site oficial]. Belo Horizonte, 2014. Disponível em: <www.grupogalpao.com.br>. Acesso em: 09 ago. 2016.
VILLEGAS, Juan. Multiculturalismo e multiteatralidades na América Latina. In: MOSTAÇO, Edélcio (Org.). Para uma história cultural do teatro. Florianópolis: Design editora, 2010. p. 87-108.
COMO CITAR ESSE TEXTO
DUPRAT, Andréia Carolina Duarte. Grupo Galpão: pensamento e obra. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!blank-1/le5iz>. Acesso em: [dia mês. ano].