A imagem que analisarei não é uma obra de arte no sentido canônico do termo, mas, certamente, tem valor artístico, sendo uma expressão estética e uma representação cultural de determinado grupo social. Trata-se de uma ilustração, anônima, publicada na capa do jornal socialista O Echo Operário, da cidade de Rio Grande (RS). Como não se trata de uma obra de arte apenas no sentido estético do termo, possuindo também o caráter de imagem que procura informar uma determinada mensagem e está profundamente imbricada na realidade social em que foi produzida, me reporto aos conceitos de Pierre Francastel, que, a partir de sua sociologia histórica comparativa, procurou entender a produção artística em íntima ligação com o ambiente social em que ela foi concebida.
A ilustração está estampada na capa do jornal O Echo Operário da cidade de Rio Grande, do dia 1º de maio de 1898. O periódico havia se transformado no órgão oficial do Partido Socialista Rio-Grandense, já que a agremiação havia sido fundada recentemente e lançava seu manifesto naquele número. A data, 1º de maio, era muito simbólica, pois estava consagrada como o Dia do Trabalhador. Essa é uma questão muito importante, já que, simbolicamente, os trabalhadores se mostravam ao restante da sociedade nesse dia específico.
A imagem diz muito sobre os objetivos do Partido Socialista e sobre a ideia que se fazia da mobilização de classe. Um grande grupo de trabalhadores segue em passeata tendo à sua frente dois operários típicos, com barba abundante, mas não com a roupa de trabalho (o macacão, o avental e o tamanco), mas com os trajes formais com que normalmente se participava dos atos de 1º de maio. Esses operários não têm em suas mãos nenhuma ferramenta, já que no Dia dos Trabalhadores ninguém deveria trabalhar, mas uma das figuras destacadas segura uma bandeira com as palavras SOCIALISMO. Os trabalhadores pisam sobre rosas, caminham enquanto cantam, tiram seu chapéu em reverência a um grande sol que surge no horizonte no qual se lê “1º de maio de 1898”, enquanto um pássaro voa altaneiro sobre todos eles.
A imagem é realista, mas não mostra especificamente os trabalhadores da cidade de Rio Grande, embora se possa perceber o traço europeu que caracterizava os imigrantes desse local. Mais do que representar fielmente os operários rio-grandinos, essa imagem é carregada de um grande valor por todos os componentes que a formam. Ao pisar sobre rosas e caminhar rumo a um sol que lhes ilumina, esses trabalhadores carregam em seu cortejo a ideia de um futuro de libertação
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A ideia representada não é gratuita; relaciona-se diretamente com o conteúdo do jornal, pois este era o órgão oficial do Partido Socialista de Rio Grande, cujo manifesto de fundação se encontrava dentro das páginas do periódico. Dessa forma, para o operário que tomasse contato com a imagem e que soubesse ler sua representação, ficaria claro que o PS seria o caminho para levar a classe trabalhadora à sua emancipação. Isso era bastante condizente com a ideia daqueles militantes de que os trabalhadores só seriam livres se construíssem organizações políticas próprias, que poderiam representar seus interesses frente aos patrões e ao Estado Burguês.
Mas, além da mensagem, também podem ser feitas outras relações a partir da imagem, especialmente quando associada com atos públicos realizados naquele período. É necessário fazer esse exercício, pois, como aponta o historiador Pierre Francastel, a arte não se encontra isolada do restante da sociedade; se não é correto enxergar a expressão artística apenas como reflexo de outro tipo de linguagem, ela também não é um discurso totalmente separado de outras práticas sociais. Nesse caso, a imagem propagada pelos socialistas rio-grandinos pode indicar tradições e referências pouco perceptíveis se a ilustração fosse tomada apenas como uma linguagem simbólica e imagética.
A passeata poderia muito bem ser tomada como uma procissão se observarmos com cuidado os símbolos mobilizados para construir a imagem. À frente, como em um ato religioso, a bandeira do socialismo pode ser assimilada ao pálio ou ao estandarte de determinado santo. Os cantos de luta, que os operários parecem entoar, também poderiam ser interpretados como orações. Acima do grande cortejo, uma águia abre suas asas sobre os trabalhadores, mas esse pássaro poderia ser também a pomba do Espírito Santo, que guia os crentes enquanto eles se aproximam da igreja onde vai se realizar a missa solene. A guirlanda de flores que está desenhada sobre a ilustração, com uma fita onde se lê uma homenagem do jornal, também seria um atributo das procissões.
Com isso, não estou querendo afirmar que os socialistas de Rio Grande simplesmente transferiram a sua fé no catolicismo por uma nova religião, laica e utópica, no futuro do socialismo. Restringir a análise a esse aspecto seria injusto, inclusive desonesto, para com muitos militantes que dedicaram boa parte do seu tempo para um lento trabalho organizativo, para uma complexa discussão teórica e para a ação prática. Quando me refiro a esse simbolismo, penso nos modelos de atos públicos que estavam disponíveis para esses trabalhadores naquela conjuntura. A manifestação do 1º de Maio era algo muito recente, havia sido instituída em Paris no ano de 1890; por essa razão, não parece estranho que os trabalhadores, quando pensavam suas manifestações, se remetessem a modelos conhecidos por todos.
Alguns anos antes, em 1889, na cidade de Porto Alegre, o jornal A Federação anunciava a inauguração da Escola da Sociedade de Beneficência União Operária, com uma festa acompanhada de discursos, com a bênção do estandarte da associação na Capela do Espírito Santo, ao lado da Matriz de Nossa Senhora Madre de Deus. Dessa forma, em um período não muito distante (no final do Segundo Império), uma festa operária poderia assumir também um caráter religioso. Além do mais, os socialistas tinham uma dura crítica contra a Igreja Católica, mas não eram todos que procuravam se afastar da religião (o que vai ser bem mais comum entre os anarquistas). Antônio Guedes Coutinho, principal líder socialista da cidade, inclusive, havia aderido ao espiritismo.
Dessa forma, a ilustração divulgada pelos socialistas de Rio Grande pode ser vista como uma imagem simbólica, que mobiliza algumas referências ligadas ao conteúdo daquele jornal, ou seja, ao programa do Partido Socialista e a sua defesa da organização dos trabalhadores para que estes alcançassem sua libertação social. Além desse aspecto, a imagem testemunha uma forma de ato público, que era o dia 1º de maio, uma data ainda bastante nova no calendário dos militantes operários, o que fez com que estes se remetessem a símbolos e práticas correntes em sua sociedade para representá-la, como as procissões religiosas.
REFERÊNCIAS
BACZKO, Bronislaw. Los Imaginarios sociales: memorias y esperanzas colectivas. Buenos Aires: Nueva Vision, 1991.
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973.
JARDIM, Jorge Luiz Pastoriza. Comunicação e militância: a imprensa operária do Rio Grande do Sul (1892-1923). 1990. Dissertação (Mestrado em História) – PUCRS, Porto Alegre, 1990.
LONER, Beatriz Ana. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). Pelotas: UFPel, 2001.
RAMOS, Paula Viviane. Ilustração e modernidade no campo do Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX: debates e rupturas. ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 22. Anais: Ecossistemas Estéticos. Belém: ANPAP/UFPA, 2013.
PETERSEN, Sílvia Regina. Ferraz. Origens do 1º de maio no Brasil. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS; MEC, 1981.
NOTAS
[*] Frederico Duarte Bartz é mestre e doutor em História pela UFRGS, tendo como seu principal tema de estudo o movimento operário no RS e Brasil durante a Primeira República. Atualmente, cursa o Bacharelado em História da Arte na UFRGS, desenvolvendo uma pesquisa sobre ilustração nos jornais operários do RS entre o final do século XIX e o inicio do século XX. Para saber mais sobre o autor, acesse o seu Curriculo Lattes. (voltar para o texto)
COMO CITAR ESSE TEXTO
BARTZ, Frederico Duarte. Ilustração para o 1º de maio do jornal "O Echo Operário" de Rio Grande. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!ilustracaooechooperario/nxm74>. Acesso em: [dia mês. ano]