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Ladrões de Bicicletas

Ladri di biciclette (Ladrões de bicicletas), 1948

P/B, 85 minutos.

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DIREÇÃO: Vittorio De Sica (1902 – 1974)

PRODUTOR: Vittorio De Sica e Umberto Scarpelli

ARGUMENTO: Cesare Zavattini, segundo o romance de Luigi Bartolini 

ROTEIRO: Cesare Zavattini, Oreste Biancoli, Suso Cecchi D’Amico, Vittorio De Sica, Adolfo Franci, Gerardo Gherardi e Gerardo Guerrieri

FOTOGRAFIA: Carlo Montuori

MÚSICA: Alessandro Cicognini

CENOGRAFIA: Antonio Traverso

MONTAGEM: Vittorio De Sica

ELENCO: Lamberto Maggiorani (Antonio Ricci), Enzo Staiola (Bruno Ricci), Lianella Carell (Maria Ricci), Vittorio Antonucci (o ladrão), Giulio Chiari (o velho), Gino Saltamerenda (o trapeiro), Elena Altieri, Michele Sakara, Fausto Guerzoni, Carlo Jachino, Masimo Randisi

PRODUÇÃO: P.D.S/E.N.I.C.

Cartaz do filme Ladrões de Bicicleta (1948)

A história

 

Na periferia de Roma, moram o operário desempregado Antonio, com sua esposa e filho. Ao conseguir um emprego para o qual precisará utilizar sua bicicleta, que está penhorada, entrega seu enxoval de roupas de cama, como único recurso de conseguir dinheiro para resgatá-la. No primeiro dia de trabalho colando cartazes na rua, um ladrão rouba sua bicicleta e, apesar de conseguir ajuda na perseguição, é enganado pelo bandido, que escapa. Com a ajuda de seu filho e de um grupo de amigos, passa a procurar a bicicleta em vários lugares da cidade, onde imaginam poder encontrá-la. Depois de muitas buscas infrutíferas, Antonio vê o ladrão com sua bicicleta, falando com um velho, corre em sua direção mas não o alcança, segue o velho e o interpela, mas ele também termina fugindo. Decide consultar uma vidente, que o desilude, porém, ao sair do prédio dá de cara com o ladrão, vai atrás dele e chega à sua vizinhança, onde é cercado por conhecidos dele. Seu filho Bruno corre e chama um policial, que após avaliar a situação desencorája-o a prestar queixa, tendo em vista que a bicicleta já não se encontra com o ladrão, e este tem várias testemunhas a seu favor. Quando percebe que nada mais pode fazer, vai embora com seu filho. Ao passar pela frente do estádio onde ocorria uma partida esportiva, percebe uma grande quantidade de bicicletas paradas na rua, e resolve roubar uma. É perseguido e pego, sob o olhar atônito de seu filho, que corre em sua direção. O dono da bicicleta, ao perceber o desespero do filho, manda o grupo soltá-lo e deixá-lo ir embora. Antonio segue caminhando em meio à multidão e, ao olhar para seu filho, começa a chorar. Bruno segura sua mão.

Cena do filme Ladrões de Bicicleta (1948)

O neorrealismo

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Ladrões de bicicletas é freqüentemente situado entre os cem melhores filmes da história do cinema. Adjetivos como cinema-crônica, estrutura aberta, melodrama contemporâneo, tragédia social, têm sido empregados com o objetivo de sintetizar o significado de Ladrões de bicicletas dentro de seu contexto artístico, mas uma obra de arte nunca é apenas o rótulo ao qual é associada.

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A Itália saía da Segunda Guerra Mundial parcialmente destruída, e juntamente com a necessidade da reconstrução econômica, impunha-se a necessidade da reconstrução ética da sociedade. Diante dessa situação, os cineastas, que já durante a guerra pregavam a volta ao realismo, preexistente no início do cinema italiano, foram para as ruas armados de novas tecnologias que permitiam a realização de filmes que mostrassem a realidade, oculta durante o fascismo, período no qual foram criados o Instituto Luce, o complexo industrial de Cinecittà, a Amostra (festival internacional do cinema) de Veneza e o Centro Sperimentale di Cinematografia, todos voltados à criação e divulgação de uma pseudo-realidade, que atendia aos interesses do poder, com seus filmes de exaltação dos valores do impero, realizações supostamente históricas da cultura italiana, adaptações literárias de autores não revolucionários, comédias românticas. As dificuldades econômicas pelas quais o país passava também foram determinantes na escolha por um baixo custo orçamentário. Estavam unidas as necessidades financeiras e de mostrar a verdade daquela situação em que o povo italiano se encontrava. (MOIX, 199?, p. 199).

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Poucos movimentos suscitaram tanto debate, no seu tempo e posteriormente, quanto o neorrealismo na Itália pós-Segunda Guerra, cuja maior influência foi o cinema francês de Jean Renoir, Carné e René Clair, tanto estética quanto eticamente (SCHIEL, 2006, p. 17). Ele não pode ser classificado por datas, mas como uma manifestação histórica e culturalmente específica de uma qualidade estética genericamente conhecida como realismo. A partir dessa perspectiva, o realismo, no neorrealismo italiano, tem um estilo visual distinto. Caracteriza-se por locações em espaços abertos, e não cenários, atores não profissionais, luz natural, fotografia livre, como em documentários, direção não intervencionista, evita ao máximo recursos de edição e pós-produção, entre outras características (SCHIEL, 2006, p. 1-2). Schiel afirma que havia um senso de neorreaslimo como uma “verdade visual” (SCHIEL, 2006, p. 2). Em termos de conteúdo, o neorrealismo aparece com um senso de ética e compromisso político. Na Itália, muitos diretores eram pautados pelo Partido Comunista Italiano e pelo Partido Socialista. Eles pretendiam mostrar um país de trabalhadores, operários, camponeses, seus dramas cotidianos em busca de uma Itália melhor depois da barbárie fascista e da elite política conservadora italiana (SCHIEL, 2006, p. 2).

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Os personagens geralmente eram pessoas oprimidas, sem esperança; na primeira fase do neorrealismo, eram pessoas que mostravam a fragilidade de sociedades profundamente afetadas pela Segunda Guerra (SCHIEL, 2006, p. 11). Os filmes do neorrealismo, incluindo Ladrões..., têm uma estrutura de apresentação e solução do conflito central, mas não há a urgência do cinema clássico, principalmente o de Hollywood. Algumas vezes, como em Umberto D, também de Vittorio de Sica, a estrutura clássica é dispensada (SCHIEL, 2006, p. 12).

Cena do filme Ladrões de Bicicleta (1948)

Ladrões de bicicleta

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Em Ladrões... percebe-se a diferença narrativa até mesmo porque o drama é pontuado por um certo humor que quebra cenas mais dramáticas, como naquela em que Antonio procura o velho comparsa do ladrão, desesperado, e flagra o filho urinando na rua. A escolha da atividade de Antonio, colador de cartazes de filmes, também não deixa de ser irônica: o filme de De Sica anuncia um grande sucesso de Hollywood, estrelado por Rita Hayworth.

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Em Ladrões...,  o diretor combina elementos realísticos, como atores não profissionais, filmagem em locação e temas sociais, com uma complexa trama que cativa a audiência e é centrada na relação entre pai e filho. Apesar da textura realista, Bondanella (2001) afirma que o filme não foi produzido na base da improvisação ou como um documentário; foi cuidadosamente planejado por De Sica. As cenas com muitas pessoas foram coreografadas. Os atores principais (pai e filho) não eram profissionais, mas foram escolhidos por sua maneira especial de andar e pelas expressões faciais. Na cena em que a bicicleta é roubada, por exemplo, foram usadas seis câmeras, em vários ângulos (BONDANELLA, 2001, p. 57).

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A preocupação política do diretor se manifesta plasticamente. De Sica, ao mostrar permanentemente o mundo que rodeia Antonio, também afirma, visualmente, que o problema não é somente de um indivíduo, mas de grande parte dos trabalhadores italianos. São raras as cenas em que o desempregado está sozinho, ou apenas com a família em cena. Mesmo que apareçam em primeiro plano, há uma constante movimentação de bondes, ônibus, pessoas caminhando, correndo e, claro, bicicletas. As formas curvas pontuam o filme, dando movimento e sublinhando, plasticamente o tema da bicicleta, da necessidade de se manter e à família. De acordo com Rocchio (1999), a perda da bicicleta de Antonio singulariza as dificuldades de todos os outros.

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Há sempre rodas girando, ou prédios com arcos, sombras em movimento. Essas imagens falam mais do interior angustiado de Antonio do que seus gestos e expressões, geralmente contidos. Mesmo quando a cena seria presumivelmente de pausa, há movimentos ao redor do personagem principal: na igreja, as pessoas não se ajoelham todas ao mesmo tempo; vão se movendo à medida que a câmera as flagra, em sincronia, corroborando a ideia de coreografia. O mesmo acontece na primeira busca pela bicicleta, em uma espécie de mercado aberto. Há várias ações ocorrendo ao mesmo tempo. Enquanto, no primeiro plano, Antonio e os amigos fazem sua busca, atrás e lateralmente, pessoas passam, conversam, negociam, examinam os produtos à venda. Novamente, nesta passagem, o sentimento está mais no externo do que na expressão de Antonio: à medida que a câmera passeia por uma infinidade de peças de bicicletas desmontadas, pneus, buzinas e carcaças, o espectador sabe que a busca será difícil, senão impossível, pois há um mercado de roubo e revenda e isso não precisa ser dito, é mostrado. Rocchio (1999) chama a atenção para a casa de penhores, uma forma de o diretor estabelecer as condições sociais: as cenas que mostram a fila de trabalhadores entregando seus pertences e a do funcionário subindo pelas prateleiras que mais parecem prédios construídos por roupas penhoradas são marcantes.

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A história opressiva da busca pelo único meio de sobrevivência da família encontra, nas soluções visuais, um certo contraste. Dificilmente há cenas em ambientes fechados e, mesmo quando acontecem, são usadas portas, janelas abertas como pontos de fuga e perspectiva, que ampliam o cenário. No final, no entanto, à medida que o personagem vê reduzidas as chances de encontrar a bicicleta e, portanto, continuar empregado, a câmera se fecha em closes e a edição fica mais ágil, demonstrando a angústia de Antonio. Ele, que era mostrado como uma pessoa controlada em meio à multidão que se movimenta sem parar, começa a aparecer mais sozinho. Exemplo é a descida à beirada do rio, somente ele, com a culpa por ter se descontrolado e batido no filho, que o acompanha na busca pela bicicleta que se tornou símbolo de salvação da família.

Cena do filme Ladrões de Bicicleta (1948)

Curiosidades:

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David Selznick ofereceu-se para produzir o filme, desde que Cary Grant fizesse o papel principal. De Sica recusou (BONDANELLA, 2001, p. 57).

 

Sergio Leone trabalha no filme como figurante (um dos seminaristas) e como assistente de direção. (IMDB, 2010).

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REFERÊNCIAS

 

AUGUSTO, Maria de Fátima. A montagem cinematográfica e a lógica das imagens. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FUMEC, 2004.

 

BONDANELLA, Peter. Italian cinema: from neorealism to the present. 3rd. edition. New York: The Continuum International Publishing Group, 2001.

 

MOIX, Miquel Porter i. Os clássicos do cinema. Ladrões de bicicleta. Barcelona: Altaya, 199?. P. 195 – 205. 40 fascículos/vídeos.

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ROCCHIO, Vincent F. Bicycle thieves: identification, focalization, and restoration. In: ______. Cinema of anxiety: a psyichoanalisys of Italian neorealism. Austin (Texas): The University of Texas Press, 1999.

 

ROCHA,  Adriano Medeiros da. Construindo o Cinema Moderno. UNIrevista, São Leopoldo, Vol. 1, n° 3, p. 1 - 7, julho. 2006.

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SCHIEL, Mark. Italian neorealism: rebuilding the cinematic city – short cuts. London: Wallflower, 2006.

 

WILLI, Daniele (coord.). 1000 que fizeram 100 anos de cinema. Ed. Brasileira: Armando Gonçalves (Coordenação). Trad. Paulo Leitão e outros. São Paulo: Editora Três, 1995.

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IMDB. Ladrões de Bicicleta. Disponível em: < http://www.imdb.com >. Acesso em: 28 out. 2010.

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COMO CITAR ESSE TEXTO
 
FERREIRA, Cláudio Jansen; VARGAS, Rosane. Ladrões de Bicicletas. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!ladroesdebicicleta/zhej9>. Acesso em: [dia mês. ano].

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