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Carlos Páez Vilaró (1923-2014)

Maternidade/Figuras, 1956

Óleo sobre duratex, 125 x 60 cm

Porto Alegre, Pinacoteca Barão de Santo Ângelo

Fique em pé frente ao original por alguns instantes e não precisará sequer olhar a legenda para compreender o tema da obra: a maternidade. A dimensão do suporte não comporta um ser humano de tamanho natural, mas é suficientemente verticalizado para que a gente sinta-se acolhido por este terno colo de mãe, assim como o filho que está em seus braços.

 

O quadro é composto apenas pela figura da mãe segurando o bebê, bem no centro, e pelo fundo, dividido ao meio verticalmente em duas cores: ocre (à esquerda) e cinza (à direita). Os traços são predominantemente retos e angulados, as pinceladas aparentes e irregulares, com leves acúmulos de tinta. As cores são contrastantes entre si, sobrepondo-se em alguns locais e gerando novos tons.

 

A mãe é uma mulher negra, com um turbante branco em sua cabeça, brincos de argola em suas orelhas e lábios vermelhos polpudos, ela também divide-se ao meio, tendo cores diferentes em cada lado. À esquerda, seu rosto e pescoço são mais escuros, sua roupa é branca e pode-se vislumbrar um círculo cinza (representando seu seio), o braço e as mãos são divididos em diversos tons de marrom e o pé é marrom claro, contrastando com o fundo ocre. À direita, seu rosto e pescoço tem mais tons ocres misturados ao marrom, seu vestido é vermelho-vivo e seu pé marrom escuro, em oposição ao fundo cinza. No limiar das cores, unindo o branco com o vermelho, temos traços em forma de X que no triângulo superior denotam sua vagina em cor de rosa.

 

O bebê também é negro, não tem cabelos ainda, seus lábios também são vermelhos e está vestido de azul claro, é possível ver seus pés, mas não as suas mãos, talvez estejam escondidas sob as da mãe ou dentro do manto. Seu rosto está levemente inclinado, fitando os olhos da mãe, que retribui o gesto ternamente.

 

Esta pintura a óleo sobre duratex é do início da fase de ruptura (1956-1959) [1] do pintor uruguaio Carlos Páez Vilaró (cuja assinatura está bem visível no canto inferior esquerdo), as obras desta época têm forte influência do cubismo, tanto em suas formas, como em suas cores. Esta mudança provavelmente ocorreu por causa da sua amizade com Pablo Picasso (1881-1973), entre outros artistas, que conheceu quando viajou a Paris no começo da década de 1950 e com quem manteve contato.

 

Vilaró não faz apenas pinturas, também é escultor, ceramista e arquiteto (além de músico, escritor e cineasta), sendo mundialmente conhecido pela criação da Casa Pueblo. Durante boa parte da sua vida persistiu nos temas ligados à cultura negra, não satisfeito ainda com o conhecimento obtido ao participar ativamente das manifestações no cortiço Mediomundo, ele viajou a países com forte presença negra, como Brasil, Senegal, Congo, etc.

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Con pasión desenfrenada, Páez Vilaró se entregó totalmente al tema, pintando decenas de cartones, componiendo candombes para las comparsas lubolas, dirigiendo sus coros, decorando sus tambores o actuando como incentivador de un folklore que en ese momento luchaba por imponerse contra la incomprensión. Lavanderas, velorios, Navidades, mercados, bailongos a la luz de la luna, poblaron los cartones y lienzos de Páez. (SITE OFICIAL)

Em um primeiro momento podemos relacionar a obra às madonas, esta simbologia é muito forte e invariavelmente a representação de uma mãe com filho no colo pode indicar a Virgem com o menino Jesus, nesta tela de Vilarò (figura acima), além do gesto e do título, temos as cores (o branco e o vermelho na roupa da mãe e o azul na roupa do filho), o seio aparente e o olhar de intimidade entre eles, que tradicionalmente fazem parte desta iconografia cristã, como vemos no exemplo abaixo.

Rafael Sanzio (1483 – 1520)

Madona del Granduca, c. 1505

Óleo sobre madeira, 84 x 55 cm

Florença, Palazzo Pitti

Fazer uma madona negra por si só já foge ao cânone europeu renascentista e legitima a pluralidade de etnias, reiterada pelo uso de diversos tons de pele na mãe, que longe de serem apenas efeitos de iluminação, representam a miscigenação de um povo. Sendo o artista um estudioso e admirador da cultura afro não é nenhuma surpresa esta representação, inclusive a valorização dos laços familiares, desta ternura presente nesta delicada relação e a união das famílias negras estão presentes em outras obras da mesma fase, como Família (1956) e Muleque (1958), respectivamente (figuras abaixo).

Carlos Páez Vilaró (1923-2014)

Família, 1956

Carlos Páez Vilaró (1923-2014)

Muleque, 1958

Entretanto, não consigo evitar de pensar que neste caso os indícios de madona reiteram a sagrada relação entre mãe e filho, a indissociável cumplicidade destas duas criaturas, que jamais deveriam ser separadas, mas que o foram, inúmeras vezes, no período da escravidão. O fato da mãe ser uma mulher negra, de seu olhar ser um pouco triste e de portar um turbante em sua cabeça, remete às amas-de-leite que faziam os serviços domésticos e cuidavam das crianças brancas, sem a oportunidade de criar seus próprios filhos, que muitas vezes eram vendidos ou sucumbiam.

 

Inúmeros artistas brasileiros também proporcionaram este reencontro das mães negras com seus filhos através da arte, mas ao ver a obra de Vilaró associei imediatamente à de Lasar Segall (1891-1957), de onde provém o título deste texto: Mãe Preta, 1930 (figura abaixo).

Lasar Segall (1891-1957)

Mãe Preta, 1930

Óleo sobre tela, 73 x 60 cm

Coleção Beki Klabin

Vilaró parecia acreditar que era função da arte registrar e enaltecer esta cultura negra que vivia às margens. Estes folclores e costumes que pertencem sim à cultura do Uruguai (entre outros países) e não podem ser simplesmente ignorados. Dar o devido valor às pluralidades culturais ainda hoje é um desafio, mas obras como Maternidade (1956) deixam a sua marca.

REFERÊNCIAS

 

UFRGS.  Acervo do Instituto de Artes.  Disponível em: <http://www.ufrgs.br/acervoartes/acervo>. Acesso em: 15 Nov. 2013.

 

VILARÓ, Carlos Páez.  Site oficial.  Disponível em: <http://carlospaezvilaro.com.uy/nuevo>. Acesso em: 24 Nov. 2013.

NOTAS

[1] Classificação estabelecida pelo site oficial do pintor. Disponível em: <http://carlospaezvilaro.com.uy/nuevo/1956-1959-raptura/>. Acesso em: 26 Nov. 2003. (voltar ao texto na nota 1)

COMO CITAR ESSE TEXTO

BENACHIO, Ana Laura.  Mãe Preta.  HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/mae-preta>. Acesso em: [dia mês. ano].

Notas
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