Figura com Reposteiro, de Lasar Segall
E às vezes retorna
No sossego parado de um dia a lembrança
Dessa vida alheada na luz espantosa.
Cesare Pavese
Lasar Segall (1891-1957)
Figura com Reposteiro, 1954
Óleo sobre tela, 81 x 60 cm
São Paulo, SP, Museu Lasar Segall – IBRAM/MinC
A silenciosa Figura com Reposteiro (1954) prende o olhar do espectador e não é pelo decote da camisa aberta e sim pelos olhos amendoados e soturnos da mulher. O interesse não é na erotização da mulher e sim na atmosfera intimista e melancólica, na tristeza e na condição social da personagem dessa tela. Lasar Segall (1891-1957) na série Erradias (incluindo Figura com Reposteiro) apresenta o cenário do bairro Mangue, na cidade do Rio de Janeiro, local frequentado por proletários e caracterizado pela prostituição de mulheres negras e polacas; contrastando com o bairro da Lapa, posto que o público desse era frequentado pela elite carioca em busca da boêmia e da prostituição de luxo. O bairro do Mangue é cenário comum nas obras do artista que o propõe em suportes como a gravura estendendo-se pela aquarela e pela pintura a óleo.
Lasar Segall, nascido em família judaica, na Lituânia (enquanto esse país ainda pertencia ao Império russo), desde jovem frequentou curso de desenho e, aos 15 anos, partiu para a Alemanha a fim de se profissionalizar na Academia Imperial de Belas Artes de Berlim. Durante a década de 1920, realizou viagens pela Europa com o propósito de expor, e, em 1927, após algumas incursões no sistema das artes do Brasil, se naturaliza brasileiro. Mário de Andrade (1893-1945) chamou de “fase brasileira” a desenvoltura das obras segallianas que se envolveram com a luz, com a cor, com a natureza e com os temas evidentemente tropicais e brasileiros (D’HORTA, 2009).
O artista elaborou ao longo da sua carreira, com percursos na Europa e no Brasil, características que perpassam vertentes artísticas como o Expressionismo, o Cubismo e a Neue Sachlichkeist (Nova Objetividade), que se fizeram interessantes no contexto artístico brasileiro a partir da década de 1930. A presença de Segall no Brasil se dá em um momento central, posto que nesse período diversas circunstâncias nacionais e internacionais despertaram um projeto ideológico de engajamento político, em que os artistas, tais como Di Cavalcanti (1897-1976) e Candido Portinari (1903-1962) e o próprio Segall se dispuseram a executar nas suas obras a temática de caráter social, retratando a realidade brasileira (SIMIONI, 2014, p.255). O que Segall oferecia artisticamente, para Mário de Andrade, era fundamental para a formação de uma identidade brasileira, visto que o artista adaptou a forma e a expressão do país, como é destacado em:
Segall é realmente um dos mais interessantes modernistas que conheço. Trabalha indiferentemente pintura e gravura. Admirável técnica de gravador, principalmente na litografia e na água-forte. Mas ainda o que mais atrai nele é o espírito. […] Lasar Segall é para mim um dos que melhor resolvem o problema das relações entre a arte e o mundo exterior. Para ele o mundo exterior existe, mas converge para o interior do ser racional, onde se recria como um motivo de expressão. (ANDRADE apud D’HORTA, 2009).
O fato de Segall não ter nascido no Brasil é praticamente insignificante – a menos que pensemos na importância da sua produção e ligação com os movimentos artísticos europeus, que o influenciariam por toda sua carreira, quando ainda vivia na Europa -, e segundo Manuel Bandeira (1886-1968), o artista conseguiu identificar o Brasil nas suas pinturas, pois viveu e extraiu a temática do negro e do pobre, ele sobrepôs a temática do judeu – que poderia ser seu fundamento nato – por essa temática mais brasileira, principalmente com o Mangue, como é destacado em texto introdutório para o álbum de gravuras e desenhos do artista, intitulado Mangue:
Segall, alma séria e grave, ia ali [ao Mangue] para debruçar-se sobre as almas mais solitárias e amarguradas daquele mundo de perdição, como já se debruçara sobre as almas mais solitárias e amarguradas do mundo judeu, sobre as vítimas dos pogroms, sobre o convés de terceira classe dos transatlânticos de luxo. (SCHWARTZ, 2013, p.87).
Diante das obras de Segall com essa temática de reconhecimento da situação das prostitutas é conveniente pensarmos em outro artista brasileiro: nas mulheres em primeiro plano de Di Cavalcanti; e, também lembrar algumas obras do artista alemão Ernst Kirchner (1880-1938), pelos contrastes mesmo trabalhando sob as tendências do Expressionismo, e pela temática e centralização na tela das prostitutas. Essa disparidade se deve às cores, Kirchner prefere os amarelos e verdes, enquanto que Segall as cores terrosas, deixando o ambiente enclausurado. O mesmo vale para o tratamento das personagens: Kirchner destaca ângulos agudos, Segall prolonga torneando-as.
O espectador é conquistado por essa tela pela maneira tímida que a mulher encara, ainda que seu corpo esteja explícito com a camisa aberta, seu seio à mostra, é a partir dos seus olhos que reconhecemos seu sentimento. Como se o artista desejasse que o olhar do espectador fosse embalado nesses dois ritmos, o corpo e a alma. É a mulher com a necessidade de estar ali pelos agravantes sociais e a vontade de não estar. Sob um cenário que não importa tanto tematicamente – pouco se reconhece do que é mostrado –, mas que funciona formalmente como moldura da mulher, como afirma a historiadora Vera D’Horta se referindo aos quadros de natureza de Segall e que serve para esse quadro também: “[…] A composição enfatiza mais uma vez a prevalência do ser humano na obra de Segall. E o tratamento formal serve para dar ênfase às ideias de solidez, fixidez e permanência [..]”. (D’HORTA, 2009, p. 175).
Ainda que o cenário não importe, se tratando de temática, ele é extremamente importante para pensar a produção desenvolvida pelo artista até essa sua última fase, em que a verticalidade do ambiente e a própria mulher se combinam para criar uma estrutura de grade. Conforme o historiador da arte Tadeu Chiarelli,
A rigidez dessa divisão, no entanto, é atenuada pelo sempre rico jogo de tonalidades a ela sobreposto. [...] Apesar das sugestões de planos de profundidade, a lógica modular que estrutura a pintura impõe a bidimensionalidade à percepção do observador, que, então, é levado a se ocupar dos requintes que Segall empregou para solucionar, por meio de cores e tonalidades sutis, cada área da superfície pictórica. (CHIARELLI, 2008, p.53)
A mulher precisa se destacar do fundo, ao mesmo tempo em que precisa fazer parte de um todo; então, Segall limita as linhas pela própria pincelada, valendo-se também para o volume, percebemos isso na área dos olhos dela e no trato da sua camisa com manchas de tons verdes escuros e claros, e no contraste das paredes amarela e vermelha. Especificamente em Figura com Reposteiro, Segall integra pelo menos duas vertentes artísticas, o expressionismo e o cubismo, como afirma o crítico de arte Ronaldo Brito, para ele existe
[…] um singular expressionismo do sóbrio, os contrastes surdos de tons e matizes que remetem muito mais a Cézanne e ao cubismo analítico de Picasso-Braque do que à tradição expressionista. Não é nada ortodoxo, mas totalmente coerente. Na verdade, o artista constrói a superfície com a cor (uma das lições básicas de Cézanne) e permanece vinculado à disciplina cubista, seja na busca do plano, seja no tratamento acetado dos volumes. A luta cubista para integrar figura e fundo através da trama das pinceladas exige uma paleta de contrastes mínimos e rigorosos que afirma a composição nos estritos limites bidimensionais. Essa operação conscienciosa assume em Segall, no entanto, uma conotação expressionista: o drama íntimo e sofrido dos ocres e cinzas traduz imediata e sensivelmente o sentido do sujeito. (BRITO, 2005, p.285).
Essa não ortodoxia se deve ao fato de que coexistiram no conjunto de suas obras vertentes como o expressionismo, o cubismo, o futurismo e a nova objetividade, que combinavam com a estrutura temática proposta pelos artistas no Brasil, como visto anteriormente.
É possível imaginar que a mulher veio caminhando até a janela em passos arrastados, ou após ter concluído seu trabalho ou a espera de algum cliente, e pelo olhar está alheada da sua situação. Ela não vê se cumprir promessas que lhe foram ditas no passado, já conhece seu cotidiano; no entanto, ela vai até a janela, pois ainda há a esperança no seu sentido intangível – é a promessa que não se consegue ver –, mas que permanece além do indivíduo porque ainda há o futuro.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Pintura – Lasar Segall. A Ideia, n. 19, 1924. In: D’HORTA, Vera. Segall e o Bananal. In: PALHARES, Taisa (org). Arte Brasileira na Pinacoteca do Estado de São Paulo: Do Século XIX aos Anos 1940. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
BRITO, Ronaldo. Segall, o expressionismo do sóbrio (Extraído de A gravura de Segall, 1985). In: BRITO, Ronaldo. Experiência Crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 284-285.
CHIARELLI, Tadeu. Segall Realista: algumas considerações sobre a pintura do artista. In: Segall realista. São Paulo: Museu Lasar Segall; Centro Cultural FIESP, 2008. 245p. il. Curadoria Tadeu Chiarelli. p. 11-55.
D’HORTA, Vera. Segall e o Bananal. In: PALHARES, Taisa (org). Arte Brasileira na Pinacoteca do Estado de São Paulo: Do Século XIX aos Anos 1940. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 166-177.
PAVESE, Cesare. Noite. (trad. Mauricio Santana Dias). In: Trabalhar Cansa. SP: Cosac Naify, 2009.
SCHWARTZ, Jorge. Lasar Segall: um ponto de confluência de um itinerário aro-latino-americano nos anos 1920. In: SCHWARTZ, Jorge. Fervor das Vanguardas: Arte e Literatura na América Latina. São Paulo: Companha das Letras, 2013. p. 69-95.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Modernismo no Brasil: campo de disputas. In.: BARCINSKI, Fabiana Werneck (org). Sobre a arte brasileira: da Pré-História aos anos 1960. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes: Edições SESC São Paulo, 2014. p. 232-263.
NOTAS
(*) Bacharela em História da Arte pelo Instituto de Artes (UFRGS), atualmente pesquisa a crônica de arte na produção de Raul Pompéia. (voltar ao texto na nota de autor)
COMO CITAR ESSE TEXTO
PELK, Samara Müller. Figura com Reposteiro, de Lasar Segall. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!reposteirolasar/u0ofw>. Acesso em: [dia mês. ano].