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"Encontro de Índios com Viajantes Europeus", de Rugendas: um exemplo da idealização do Brasil pelos artistas viajantes 

Georgia é uma fonte em negrito elegante e bem legível, mesmo em telas menores. É a fonte ideal para mobile. 

O artista alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) visitou o Brasil em duas ocasiões. Na primeira, em 1822, o jovem artista de apenas 19 anos artista chegou ao país como membro da expedição do barão Georg Heinrich Von Langsdorff (1774-1852). Rugendas acabava de concluir sua formação artística na Academia de Munique, não tinha nenhuma experiência no trabalho de ilustrador que teria que realizar, e seus conhecimentos sobre o Brasil eram muito escassos. Com problemas para o início da expedição científica de Langsdorff, o jovem e impulsivo Rugendas passou a trabalhar sozinho. De acordo com Diener e Costa (2002), ele teria afirmado em cartas e registros posteriores que havia rescindido o contrato ainda em 1822 e que sua participação na expedição teria se dado como uma colaboração, porém foi em 1824 que ele investiu violentamente contra Langsdorff, pondo fim à relação entre eles, voltando para a Europa no ano seguinte. Os desenhos e esboços de Rugendas, que em grande parte já haviam sido enviados para a Alemanha, ficaram com ele. Entre julho de 1845 e agosto de 1846, fez uma escala no Rio de Janeiro, concluindo a sua grande viagem americana, durante a qual havia percorrido o continente desde o México até o Cabo de Hornos.

 

Os trabalhos realizados durante a primeira visita ao Brasil foram feitos sem obedecer a um projeto artístico próprio e previamente elaborado. A seleção dos temas e a forma de apreendê-los estiveram determinadas fundamentalmente pela experiência e pelas motivações que Rugendas encontrou no caminho. Após o retorno à Europa, graças ao apoio entusiasta que Alexander von Humboldt (1769-1859) manifestou pela obra de seu jovem compatriota, Rugendas conseguiu publicar, em 1835, seu famoso livro em grande formato e com cem litografias, o Voyage Pittoresque dans le Brésil (Viagem Pitoresca através do Brasil), pela editora parisiense e casa litográfica Engelmann & Cia.

 

Ao preparar os desenhos para sua publicação na Europa, Rugendas recorreu com frequência à informações de segunda mão e utilizou seus próprios esboços de forma bastante indiscriminada. Na valorização da obra de Rugendas sobre o Brasil, teve um importante papel o grande prestígio que alcançou sua Viagem Pitoresca imediatamente após a sua publicação. Embora seja um livro bonito, bem estruturado e com uma rica variedade de temas, é preciso levar em conta que sua concepção não coincide plenamente com o Brasil que Rugendas apreendeu durante sua estadia no país. Não somente são numerosas as cenas que foram modificadas radicalmente na Europa, como também há um bom número de litografias que obedecem plenamente à moda dos interesses europeus da época e cujos desenhos foram compostos por Rugendas já em Paris (DIENER, 1996; DIENER e COSTA, 2002). Portanto, a obra realizada por Rugendas durante sua permanência no Brasil teve de ser completada e enriquecida para a publicação do seu livro, o que trouxe como consequência uma marcada deformação de algumas características brasileiras e também uma idealização, em benefício de concessões ao gosto europeu da época.

 

Sua temática era predominantemente paisagística e de representação de cenas do cotidiano. Deixou desenhos a grafite e bico-de-pena de tipos americanos, brasileiros ou latino-americanos, estudos de plantas, índios, negros, retratos, vistas urbanas, paisagens. Rugendas é conhecido, porém, antes de tudo, por ser o cronista da vida, dos tipos e costumes brasileiros do século XIX. As litografias publicadas em Viagem Pitoresca através do Brasil passaram a ser conhecidas por toda a criança brasileira em idade escolar, já que em boa medida, os livros didáticos as têm utilizado como iconografia básica do país (COSTA, 1998).

 

Para Diener (1996), se analisarmos, por exemplo, alguns desenhos de tema etnográfico, poderemos ver que há esboços e estudos de figuras feitos do natural que não estão submetidos a um esquema de composição, mas também existem desenhos acabados em todos os seus detalhes e compostos com mais rigor academicista que fidelidade ao motivo representado. É provável que muitos dos trabalhos deste último tipo tenham sido elaborados na Europa para servir como desenhos prévios para as litografias da Viagem Pitoresca. No minucioso estudo de Thekla Hartmann sobre a iconografia dos índios brasileiros no século XIX (HARTMANN, 1975, p. 84 apud DIENER, 1996), a autora analisa cada uma das cenas de caráter etnográfico da publicação de Rugendas e conclui que, em termos gerais, carecem de interesse enquanto material documental.

 

De toda a significativa obra de Rugendas, escolhemos falar sobre a prancha Encontro de índios com viajantes europeus (Rencontre d’indiens avec dês voyageurs européens), por ser a única litografia feita pela própria mão do artista, já que todas as outras foram entregues a gravadores, que, como sabemos, colocaram o seu próprio olhar no trabalho. Não foi muito diferente com este trabalho realizado por Rugendas.

Johann Moritz Rugendas (1802-1858)Rencontre d’indiens avec des Voyageurs Européens [Encontro de índios com viajantes europeus], 1827-1835, litografia, 21,5 x 28,28 cm. Gravador: J. M. Rugendas, Casa litográfica: Engelmann, rue Louis-le-Grand, nº 27, Paris.

De acordo com Diener (1996), ao reconstruir a rota de Rugendas no Brasil, constata-se que seu contato com a população indígena foi muito breve, reduzindo-se a alguns poucos dias, entre os meses de julho e agosto de 1824. O diário de Langsdorff registra que Rugendas, na companhia do zoólogo Ménétriès e do botânico Riedel, encontrou-se com um grupo de índios Purí (DIENER e COSTA, 2002).  A afirmação da primeira biógrafa de Rugendas, a alemã Gertrud Richter, de que o jovem artista teria convivido “meses com uma tribo indígena” (RICHTER, 1959, p. 10-11 apud DIENER, 1996) não se confirma à luz do conjunto de sua obra. Desse modo, parece evidente que as informações colhidas por Rugendas sobre o tema foram muito rudimentares.

 

Com base nesse episódio da expedição, o artista viajante deve ter desenhado os dois estudos preparatórios conhecidos (existe referência a um terceiro, que permanece desconhecido) para essa prancha, nos quais ele mesmo parece estar representado como a figura com uma pasta às costas. Embora a gravação tenha sido realizada pelo próprio Rugendas, percebem-se diferenças significativas entre o resultado final e os desenhos preparatórios.

 

Num dos estudos, Rugendas se fixa nas figuras, descartando o ambiente. Destaca o grupo principal dos europeus formado por três homens bem vestidos, montados em cavalos (dois deles armados) e um criado/escravo ao chão (também armado), ao lado do cavalo. Diante deles se destaca apenas a figura de um dos índios, nu e altivo, portando uma lança. Os outros aparecem esboçados: um índio à direita, também com arma; e uma mulher índia, com uma criança agarrada a suas pernas.

Johann Moritz Rugendas (1802-1858), Encontro de índios com europeus, no interior da mata, (provavelmente índios Purí com Ménétriès, Riedel e Rugendas – de costas), Minas Gerais. [P-17]

No outro estudo, a composição está aparentemente completa, inclusive com o ambiente do encontro caracterizado como o interior de uma selva; com várias árvores de diferentes tamanhos, samambaias, arbustos e gramíneas. Constam representados no desenho os dois grupos dos europeus, praticamente de forma igual ao outro estudo. Os índios aparecem também em dois grupos: um de frente aos europeus, composto pela mesma figura do índio do esboço anterior e mais dois (um de cada lado), todos armados, e sem a presença da criança; o outro grupo de índios espia por trás de uma árvore, inclusive uma mulher índia com uma trouxa nas costas. Aparecem, ainda, mal definidas, outras duas figuras de indígenas mais afastadas, bem à esquerda. Os índios estão todos nus, com corpos mal definidos e com feições embrutecidas.

Johann Moritz Rugendas (1802-1858)Encontro de índios com europeus, no interior da mata, (provavelmente índios Purí com Ménétriès, Riedel e Rugendas – de costas), Minas Gerais. [P-18]

Ao passar o motivo à pedra, Rugendas mantém a exuberante vegetação, porém limpa um pouco a cena, colocando uma clareira na qual os grupos principais se encontram, destacando o local onde onde acontece o fato. Os europeus são representados em seus cavalos, praticamente como nos esboços, ficando numa posição superior em relação aos índios, demonstrando o eurocentrismo presente na concepção de mundo da época. Com relação aos índios, Rugendas suaviza e dá uma fisionomia mais nítida aos rostos; define a musculatura e idealiza os corpos, inclusive cobrindo as suas genitálias com diversos artifícios. A mulher que faz parte do grupo escondido atrás das árvores, à esquerda (agora representada com uma criança nas costas), veste um saiote que Diener e Costa (2002, p. 148) chamam de “ridículo”. No índio que está a frente do grupo central e que parece ser o chefe, o artista coloca um pássaro (muito provavelmente uma arara) em sua mão, de forma que o mesmo possa tapar seu sexo. Cobrir a nudez é uma estratégia que faz parte de uma preocupação em não chocar o público europeu, mantendo a intenção de agradá-lo.

 

Assim sendo, mesmo que Rugendas e seus companheiros tenham entrado em contato com um grupo de índios Purí no interior de Minas Gerais a cena apresentada tanto nos desenhos como na gravura foi realizada de memória e está totalmente idealizada (DIENER e COSTA, 2002, p. 148).

 

Além da nudez, observa-se também outro indício de idealização na representação do contato pacífico entre os europeus e os índios no meio da mata. Os índios aparecem dóceis e submissos; não há tensão na cena, parecendo uma colagem de dois universos distintos transplantados para o romântico interior de uma imensa floresta. A altivez do índio presente no esboço inicial foi abandonada e os europeus estão nitidamente retratados como superiores.

Johann Moritz Rugendas (1802-1858), Rencontre d’indiens avec des Voyageurs Européens [Encontro de índios com viajantes europeus], 1827-1835, litografia, 21,5 x 28,28 cm. Gravador: J. M. Rugendas, Casa litográfica: Engelmann, rue Louis-le-Grand, nº 27, Paris.

A questão da idealização - nesta, e em praticamente todas as outras gravuras de Rugendas e de outros artistas viajantes -, além do fato de serem feitas de memória ou por outras pessoas que aumentam e modificam as cenas, também visa atender às expectativas de um publico europeu ávido pelo pitoresco, formado por consumidores de livros e imagens sobre o exótico novo mundo. O Viagem Pitoresca se tornou um sucesso imediato na Europa e uma obra de referencia para todos os que queriam conhecer a natureza e a população do Brasil, sobre o qual pouco se sabia. Rugendas e seu editor procuraram apresentar este país como um lugar bonito, exótico e atrativo. A expressão “dessiné d’après nature” (desenhado do natural), colocada sob as gravuras, procurava certificar a veracidade do seu conteúdo.

 

Contudo, ao compararmos o conjunto de desenhos e as litografias que compõem os motivos apresentados no livro de Rugendas, vemos que o realismo não foi o amparo do seu teor. O Brasil que João Maurício havia levado consigo em seus apontamentos visuais tinha uma natureza exuberante, porém era mais pobre, mais desigual. As pranchas, por sua vez, trazem idealizações, tanto na representação das paisagens e nas cenas costrumbistas como nas composições sobre a população; buscam justamente responder aos anseios daqueles que projetavam sobre este espaço sul-americano um lugar para seus sonhos, seja de sobrevivência ou de uma fuga romântica para o reencontro com o mundo natural (DIENER e COSTA, 2002, p. 248).

 

Rugendas tentou responder a uma exigência do mercado editorial criando, muitas vezes, cenas baseadas em fontes literárias, ou em trabalhos escritos e ilustrações de seus antecedentes artistas viajantes, como Spix e Martius, e o Príncipe Maximiliano. Além disso, destaca-se a interferência dos competentes litógrafos que modificaram as cenas tornando-as mais pitorescas, exóticas e também mais palatáveis ao gosto europeu.

 

Porém, conforme esclarecem Diener e Costa (2002), a obra de Rugendas não tinha a pretensão de ter um caráter documental, mas apenas uma "viagem pitoresca". O artista viajante quis mostrar um espaço americano sonhado e idealizado, que certamente o seu público estava esperando.

REFERÊNCIAS

 

COSTA, Maria de Fátima. Estudios para el Voyage Pittoresque dans Le Brésil. Rugendas dibujante. In: DIENER, Pablo; COSTA, Maria de Fátima. Juan Mauricio Rugendas: pintor y dibujante. Museu Nacional de Bellas Artes, Santiago de Chile, 1998, p. 65-77 (catálogo).

 

DIENER, Pablo. O Catálogo Fundamentado da obra de J. M. Rugendas e algumas idéias para a interpretação de seus trabalhos sobre o Brasil. Revista USP, n. 30, São Paulo, jun./ago. 1996, p. 46-57.

 

DIENER, Pablo; COSTA, Maria de Fátima. Rugendas e o Brasil. São Paulo: Capivara, 2002.

 

RUGENDAS, Johann Moritz Rugendas. Viagem Pitoresca através do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

COMO CITAR ESSE TEXTO

 

ROSSI, Elvio Antônio. "Encontro de Índios com Viajantes Europeus", de Rugendas: um exemplo da idealização do Brasil pelos artistas viajantes. HACER - História da Arte e da Cultura: Estudos e Reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://www.hacer.com.br/#!rugendas/qtehr>. Acesso em:

 

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