Apontamentos sobre a sexualidade na Antiguidade e na Idade Média
“O passado não é descoberto ou encontrado. É criado e representado pelo historiador como um texto que, por sua vez, é consumido pelo leitor. [...] Ao explorarmos a maneira como representamos a relação entre nós e o passado, podemos ver-nos não como observadores distantes do passado, mas como participantes na sua criação” (Alun Munslow).
1 CONCEITUANDO A SEXUALIDADE
Na nossa sociedade atual, fala-se e comenta-se muito sobre a sexualidade[1]. Parece-me que há uma demasiada preocupação com o tema do sexo em múltiplos discursos, manifestados nos mais diferentes ambientes (na escola, no trabalho, nos meios de comunicação, na literatura, nas artes).
Numa análise superficial, pode parecer que isso é algo recente, porém, o que vou procurar mostrar neste trabalho é que em maior ou menor grau, em diferentes períodos da história, a sexualidade sempre foi objeto de discursos diversos que buscaram estabelecer certa normatização sobre o sexo e suas práticas, lembrando que os silêncios e lacunas também fazem parte desses discursos. Por isso, conceituo “sexualidade” a partir da definição de Michel Foucault:
Não se deve concebê-la [a sexualidade] como uma espécie de dado da natureza que o poder tenta pôr em cheque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas a grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder (FOUCAULT, 1999, p. 100).
Portanto, a sexualidade é um fenômeno social e histórico; é construída através dos próprios discursos que são elaborados sobre ela, dentro de relações definidas de poder[2] e que constituem um corpo de conhecimento aceito por determinada sociedade. Deste modo, a sexualidade não se refere somente ao nosso corpo físico, mas tem a ver também, conforme afirma Jeffrey Weeks (2007), com nossas crenças, comportamentos, relações, identidades, ideologias e imaginações, socialmente construídas e historicamente modeladas, que Michel Foucault (1999), chamou de “o corpo e seus prazeres”.
Neste ensaio, tomando como base algumas referências da literatura que trata da vida amorosa e sexual na Antiguidade e na Idade Média – “penosamente” selecionada, pois a quantidade de referências é muito rica - procurarei estabelecer as relações entre os textos escritos (lembrando que grande parte das obras parte de uma tradição oral) e a sociedade e a cultura do período em que foram produzidos, buscando verificar em que circunstâncias surgiram e apontando as suas mudanças e permanências de acordo com os diferentes fatos históricos e transformações sociais através dos tempos.
2 A SEXUALIDADE NA ANTIGUIDADE ORIENTAL
2.1 As civilizações do Oriente Próximo
Dos povos da Antiguidade Oriental destaco alguns aspectos da civilização babilônica, a qual parecia cultivar a sexualidade de forma muito intensa. Assim como em todas as culturas antigas conhecidas, na Babilônia eram comuns os cultos a deusas da fertilidade e estes envolviam rituais sexuais. Heródoto (s/d) relatou ser costume para as mulheres daquela sociedade se oferecer nos templos, aos estrangeiros, em troca de algumas moedas e de oferendas para as deusas. Porém, estudos mais recentes mostram que não há evidências explícitas de que os cultos mesopotâmicos tenham comportado ritos de caráter sexual, pelo menos de forma oficial e organizada (GONÇALVES, 2003).
Na literatura, o erotismo já está presente na Epopeia de Gilgamesh, um compilado de lendas e poemas, mistura de aventura, moralidade e tragédia. Provavelmente o mais antigo texto literário escrito pelo homem, foi redigido em sumério por volta do começo do segundo milênio antes de Cristo. Gilgamesh, cujo nome significa "o velho que rejuvenesce", foi rei da Suméria e fundador da cidade de Uruk. De origem divina, era tido como sensato, mas também como despótico, cuja luxúria desmedida o fazia tomar qualquer mulher que lhe agradasse, solteira ou casada. A população, descontente com o seu comportamento, apelou à deusa Aruru para que criasse um homem que o derrotasse em combate. Aruru criou, a partir da lama, Enkidu que, vivendo no meio dos animais, se tornou tão temido que Gilgamesh resolveu enviar-lhe uma cortesã para seduzi-lo. “Ela não teve pudores em tomá-lo em seus braços, ela se despiu e acolheu de bom grado o corpo ávido de Enkidu. Ele se deitou sobre ela murmurando palavras de amor, e ela lhe ensinou as artes da mulher”. Desprovido da sua inocência, Enkidu foi rejeitado pelos animais e convencido pela cortesã a acompanhá-la ao palácio de Gilgamesh. Após um combate em que não houve vitorioso, Gilgamesh recebeu-o com amizade e Enkidu tornou-se seu companheiro inseparável em muitas aventuras e batalhas. Quando os heróis voltaram para Uruk, a deusa Ishtar confessou o seu amor a Gilgamesh, “Vem comigo, Gilgamesh, e sê meu consorte: infunde-me a semente do teu corpo; deixa-me ser tua mulher e serás meu marido”, mas este a rejeitou, provocando a sua ira. E a história continua com muitas peripécias (inclusive com a presença do dilúvio), como uma apropriada obra épica.
No famoso Código de Hammurabi, o mais extenso e conhecido corpo legal do Oriente Antigo, porém não exatamente o mais antigo (BOUZON, 1987), o tema da sexualidade aparece na parte dedicada ao direito de família, onde é possível comprovar que as mulheres (embora com direitos), não tinham os mesmos direitos que os homens, o que não é exclusividade do mundo antigo. Vejamos alguns parágrafos:
§129 - Se a esposa de um awílum[3] foi surpreendida dormindo com um outro homem, eles os amarrarão e os lançarão n’água (BOUZON, 1987, p.139);
§ 142 - Se uma mulher tomou aversão ao seu esposo e disse-lhe: “Tu não terás relações comigo”, seu caso será examinado em seu distrito. Se ela se guarda e não tem falta e o seu marido é um saidor e a despreza muito, essa mulher não tem culpa, ela tomará seu dote e irá para a casa de seu pai (BOUZON, 1987, p.148);
§ 143 - Se ela não se guarda, mas é uma saidora, dilapida sua casa e despreza o seu marido, lançarão essa mulher n’água (BOUZON, 1987, p. 148).
§ 153 - Se a esposa de um awílum, por causa de um outro homem, fez matar o seu marido, essa mulher será empalada (BOUZON, 1987, p. 154).
A tradição judaica monoteísta também introduziu nos primeiros livros da Bíblia[4] (o Antigo Testamento), o seu código ético, inclusive sobre os assuntos relativos à sexualidade e a afetividade. Sob múltiplos aspectos - físico, psicológico, social, cultural e legal -, a sexualidade está presente, com maior ou menor relevância, em todas as partes do Antigo Testamento, com uma considerável variedade de abordagens. Conforme Francolino Gonçalves (2003), questões envolvendo a sexualidade são tratadas desde o relato da criação do homem. Abundam no Pentateuco[5] e nos livros históricos, textos que mencionam ou relatam práticas sexuais, aprovando umas e reprovando outras. Os escritos sapienciais[6] estão cheios de observações referentes à sexualidade, em particular às relações entre o homem e a mulher, sendo a sua expressão máxima, o Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão; um poema de amor impregnado de erotismo.
Os teus dois seios são como dois filhotes gêmeos de uma gazela pastando entre os lírios (Cânticos, 4, 5);
Como são deliciosas as tuas carícias, minha irmã, minha esposa! Mais deliciosos que o vinho são teus amores, e o odor dos teus perfumes excede o de todos os aromas!
Teus lábios, ó esposa, destilam o mel; há mel e leite sob a tua língua. O perfume de tuas vestes é como o perfume do Líbano. (Cânticos, 4, 10:11);
Como são graciosos os teus pés nas tuas sandálias, filha de príncipe! A curva de teus quadris assemelha-se a um colar, obra de mãos de artista; teu umbigo é uma taça redonda, cheia de vinho perfumado; teu corpo é um monte de trigo cercado de lírios; (Cânticos, 7, 11:12).
Em alguns livros proféticos, a sexualidade é uma metáfora para expressar as relações dos povos rivais com Israel, Judá ou Jerusalém. Vejamos um exemplo:
Todavia ela multiplicou as suas prostituições, lembrando-se dos dias da sua mocidade, em que se prostituíra na terra do Egito. E enamorou-se dos seus amantes, cuja carne é como a de jumentos, e cujo fluxo é como o de cavalos. Assim trouxeste à memória a perversidade da tua mocidade, quando os do Egito apalpavam os teus seios, por causa dos peitos da tua mocidade. (Ezequiel 23, 19:21).
3 A SEXUALIDADE NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA
3.1 A Grécia: o “amor grego”
Iniciarei falando sobre os deuses gregos, bastante impudicos no que se refere ao sexo, com a presença de situações de adultério, libertinagem, orgias, "homossexualidade” e incesto. O grande exemplo é Zeus, que não raro se unia a mortais; teve inúmeras amantes; casou com sua própria irmã Hera e teve também, pelo menos um amante do sexo masculino, o jovem Ganímedes.
Em algumas cidades da Grécia Antiga, principalmente na Atenas do século V a.C., eram muito comuns as relações sexuais e afetivas entre dois homens, geralmente entre um homem mais velho (erastes) e um jovem (eromenos). Para os atenienses esta era a forma de amor mais nobre e virtuosa existente e tinha a função de transformar os jovens em futuros cidadãos da polis, lembrando que a sociedade “grega” era predominantemente masculina e que a mulher não tinha espaço na vida pública. É preciso destacar que os termos “homossexual” e “heterossexual” ainda não existiam, eles foram criados apenas no século XIX [7]. Conforme Kenneth Dover (1994, p. 13): “a cultura grega diferia da nossa em sua aceitação da alternância de preferências homossexuais e heterossexuais num mesmo indivíduo”, ou seja, para os gregos existiam apenas gostos diferentes, que podiam se alternar ou modificar durante a vida do indivíduo, porém não possuíam ou reconheciam uma identidade homossexual, heterossexual ou bissexual. Pode-se dizer que os gregos sentiam-se atraídos pela beleza, independente do sexo[8].
Algumas referências, embora não explícitas, deste “amor grego” estão presentes em passagens dos poemas épicos de Homero, Ilíada e Odisséia, como a estreita relação entre Aquiles e Pátroclo, destacando-se, por exemplo, a forma como é descrito o exagero das emoções de Aquiles quando Pátroclo é morto e a promessa feita por Aquiles de vingar o companheiro; e também a passagem que trata do rapto de Ganímedes por Zeus “para servir de copeiro no Olimpo”.
Também na Odisséia, são um pouco mais explícitas as aventuras amorosas e sexuais do herói Ulisses, sempre envolvido com mulheres, desde a ninfa Calipso (de quem ficou prisioneiro), até a feiticeira Circe, passando pelas sereias.
3.2 A Roma Pagã
Os romanos [9], teoricamente, pareciam ser mais liberais, embora também sejam considerados sádicos e cruéis. Uma das explicações possíveis talvez seja a facilidade que os romanos tinham de absorver e adaptar elementos de outras culturas, a partir de suas conquistas.
Registros da vida cotidiana e da sexualidade na Roma Antiga são encontrados no poema A Arte de Amar de Ovídio, um conquistador que confessou ter amado muitas mulheres. A Arte de Amar, escrita no século I a. C. (época da paz romana), é uma espécie de “manual didático” dividido em três livros, sendo os dois primeiros dirigidos aos homens e o terceiro às mulheres. O primeiro visa, genericamente, ensinar o homem a seduzir a mulher; o segundo, a conservar o amor, depois de concluído, com êxito, o processo de sedução; o terceiro engloba o mesmo conjunto de ensinamentos, mas, desta feita, dirigidos à mulher. Diz o autor no preâmbulo: “Se houver algum homem comum a quem a arte do amor seja desconhecida, que ele leia este poema e que, conhecendo-a através de sua leitura, ame” (OVÍDIO, 2010, p. 17). De fato, o poeta ensina desde o modo como o apaixonado deve cuidar da aparência, até os jogos que ele deve empreender para deixar a amante à sua inteira disposição. Apesar da ressalva feita pelo autor no inicio do seu texto: “O que cantaremos é o amor que não infringe a lei, são as ligações permitidas; meu poema não mostrará nada de repreensível” (OVÍDIO, 2010, p. 18), a publicação da Arte de Amar na época pode ter sido, ao menos em parte, responsável por Ovídio ter sido banido de Roma pelo imperador Augusto, por sua celebração do amor extraconjugal num regime que apesar de ser tolerante com algumas situações, promovia os valores da família. Vejamos alguns dos conselhos do poeta aos homens, no tópico que trata da elegância masculina:
Mas não vá frisar seus cabelos a ferro, nem gastar suas pernas esfregando pedra-pomes. Deixe esses cuidados àqueles que,com gritos à moda frigia, celebram a deusa do monte Cibele. (...) É pela simples elegância que os homens devem agradar: que sua pele seja bronzeada pelos exercícios no Campo de Marte; que sua toga caia bem e não tenha manchas. (...) que suas unhas estejam bem cortadas e limpas, que nenhum pêlo saia de suas narinas; que um hálito desagradável não saia de uma boca malcheirosa, e que o odor do macho, pai do rebanho, não fira as narinas (OVÍDIO, 2010, p. 37).
Espécie de ratificação dos postulados prévios, os conselhos finais dados às mulheres, concentram-se nas formas e modalidades do sexo:
Que cada mulher se conheça bem; de acordo com seu físico, escolha esta ou aquela posição; a mesma postura não serve para todas. A mulher particularmente bonita deitará sobre as costas. É de bruços que deverão se mostrar aquelas que estão satisfeitas com as suas costas. (...) A mulher pequena ficará na posição do cavaleiro; como era muito alta, jamais a tebana, esposa de Heitor, montou sobre seu marido como um cavalo. Ficará de joelhos sobre o leito, a cabeça um pouco curvada para trás, a mulher que deve ser admirada em todo o contorno lateral. Se suas coxas têm o encanto da juventude e seu peito também não tem imperfeição, o homem ficará em pé, e você estendida sobre o leito perpendicularmente. (...) Que a mulher sinta o prazer de Vênus se abater até o mais fundo do seu ser, e que o gozo seja igual para seu amante e para ela! (OVÍDIO, 2010, p. 112-113).
Nessa época, fala-se e escreve sobre o sexo, como talvez nunca antes houvesse sido feito. A prova disso são algumas inscrições encontradas em latrinas da cidade de Pompéia, algumas escritas por homens, mas também outras escritas por mulheres, provavelmente prostitutas (FEITOSA, 2008):
Floronius Binet ac Miles leg vii hic fuit. Neque mulieres scierunt nisi paucae er sés erunt (CIL, IV, 8767)
[Florônio, fodedor e soldado da sétima legião esteve aqui e as mulheres nem souberam, senão, até seis seriam poucas!]
Hic futui cum sodalibus (CIL, IV, 3935)
[Aqui, com meus colegas, fodi]
Arphocras hic cum Drauca bene futuit denario (CIL. IV, 2193)
[Aqui Harphocras transou bem com Drauca por um denário]
Fortunate animula dulcis perfututor Scribt qui nouit (CIL, IV, 4239) [Fortunato, doce coraçãozinho, grande fodedor! Escreve-o quem sabe] [10]
De acordo com Lourdes Feitosa (2008) é possível afirmar que as mulheres romanas tinham uma situação mais privilegiada que as gregas, com uma participação maior no espaço social; tanto as mulheres mais abastadas como as das “classes baixas”, as quais atuavam em atividades diversas, como taberneiras, tecelãs, vendedoras, perfumistas, enfermeiras, açougueiras, entre outras, não esquecendo as prostitutas, muito valorizadas naquela época. Também encontram-se referências a participação das mulheres em discussões públicas.
3.3 A Emergência do Cristianismo
Logo após a morte de Cristo, Paulo de Tarso (Saulo), judeu convertido, começa a pregar em grego em suas diversas viagens pelas terras do Império Romano e torna-se o principal responsável pela propagação do cristianismo, cuja ruptura em relação ao paganismo vai ser notada entre os séculos II e III d. C. A Paulo são atribuídos vários livros do Novo Testamento, suas “epístolas”, com sérias críticas a comportamentos considerados indignos de cristãos, como na Carta aos Romanos onde o alvo são as relações sexuais “que vão contra a natureza”:
Por isso, Deus os entregou a paixões vergonhosas: as suas mulheres mudaram as relações naturais em relações contra a natureza. Do mesmo modo também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderam em desejos uns para com os outros, cometendo homens com homens a torpeza, e recebendo em seus corpos a paga devida ao seu desvario (Romanos, 1, 26:27).
Apesar da perseguição aos cristãos no seu início, o cristianismo cresce até se tornar religião a partir do Édito de Milão em 313, emitido pelo Imperador Constantino, um ano após ter se convertido cristão.
Em 354, nasce Santo Agostinho, uma das figuras mais importantes do cristianismo. Em seus primeiros anos, Agostinho foi fortemente influenciado pelo maniqueísmo e pelo neoplatonismo de Plotino, mas depois de sua conversão e batismo (em 387), desenvolveu a sua própria abordagem sobre filosofia e teologia. Ele aprofundou o conceito de pecado original e definiu a Igreja como a cidade espiritual de Deus, distinta da cidade material do homem. Seu pensamento influenciou profundamente a visão do homem medieval.
Agostinho narra em detalhes sua jornada espiritual na famosa obra Confissões, que se tornou um clássico tanto da teologia cristã quanto da literatura mundial, até hoje inspirando escritores. Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa contando minuciosamente, e de uma maneira bastante pessoal, como era sua vida de libertino e “pecador”, cheia de tentações, até sua conversão ao amor absoluto de Deus, a partir de uma crise pessoal. Vejamos um pequeno trecho de Confissões:
(...) era para mim mais doce amar e ser amado se podia gozar do corpo da pessoa amada. Deste modo, manchava com a torpe concupiscência aquela fonte de amizade. Embaciava a sua pureza com o fumo infernal da luxúria. Não obstante ser feio e impuro, desejava, na minha excessiva vaidade, mostrava-me afável e delicado. (Santo AGOSTINHO, Confissões III,1.1, p. 57)
Richard Tarnas (2003), tomando como base principalmente os escritos de Paulo e Agostinho, procura explicar o sistema de crenças do cristianismo, destacando a sua importância para a cultura ocidental, que influenciou não só sua evolução espiritual, mas também filosófica e científica. Para Tarnas, a nascente teologia cristã estaria embasada não somente no judaísmo mas também no helenismo grego, possuindo uma “estrutura metafísica platônica”. Ele destaca que os primeiros teólogos cristãos (como Agostinho) procuraram sintetizar a doutrina filosófica grega da racionalidade divina com a doutrina da Palavra do Deus, criador único e supremo (a essência da cristandade, que vinha do monoteísmo judaico). Essa universalidade da religião cristã e a crença em único Deus foram impostas aos antigos povos pagãos e isso modificaria não apenas o destino individual dos homens, mas o próprio destino da humanidade.
4 A IDADE MÉDIA
4.1 A Igreja e a Moral Sexual Cristã
A partir do século IX, ocorre o que é chamado historicamente de “renascimento carolíngio”, com varias manifestações e inovações em diversas áreas: arquitetura, artes, música, literatura e educação [11]. Surgem os trovadores (vinculados à aristocracia) e os menestréis (populares itinerantes) e junto com eles as canções de gesta.
Embora não seja possível afirmar que houve na Idade Média uma atitude única em relação à sexualidade, os séculos XII e XIII foram marcados pela moral sexual do mundo cristão medieval, que entendia o amor como um sentimento que cumpria a função de aproximar o homem a Deus. O amor “carnal” tinha a função apenas de procriação, sendo considerado pecado qualquer outro tipo de relação, e o matrimônio surge como uma concessão, um remédio para tratar o ardor do desejo sexual.
Nesse período surgem os manuscritos das cartas trocadas entre Pedro Abelardo (religioso e filósofo francês) e a jovem Heloísa, de quem foi professor e pela qual se apaixona. Esse amor começou a esbarrar nos conceitos da época, quando os intelectuais (como Heloísa e Abelardo), racionalizavam o amor, acreditando que os impulsos sensuais deveriam ser reprimidos pelo intelecto. Não havia lugar para o desejo, que era um componente muito forte no relacionamento dos dois, originando intensos conflitos para ambos. Da história de amor entre os dois amantes, nasce Astrolábio. Algumas fontes dizem que embora Abelardo tenha desejado se casar, Heloisa recusou esse matrimônio reparador; outras afirmam que eles se casaram em segredo. O fato é que o desfecho trágico do romance é a castração de Abelardo encomendada pelo tio de Heloísa. Esta ingressa em um convento e Abelardo torna-se monge (ZUMTHOR, 2002).
Dessa história, singular para a época, Ana Paula Schlesener (2003), traz algumas considerações importantes ao analisar como uma mulher no contexto da cultura medieval consegue ter acesso a um saber e a uma prática reservada apenas aos homens, lembrando que os amantes se apaixonaram não só pela sua beleza, mas também pela sua intelectualidade, como demonstram suas cartas. A autora analisa também, através das cartas trocadas entre os amantes, como a imagem de mulher construída por Abelardo (expressão do pensamento da época) ia contra a verdadeira personalidade de Heloísa, uma figura original e que se assemelha em muitos aspectos ao que consideramos hoje como uma "mulher moderna".
4.2 O Período Final da Idade Média
4.2.1 Boccacio e O Decamerão
Giovanni Boccaccio nasceu em Florença em 1313. A sua obra prima, Decamerão começou a ser escrita em 1349. O livro marca o período de transição vivido na Europa no final da Idade Média, após o advento da peste negra.
Na narrativa, sete moças fogem da cidade Florença tomada pela peste, procurando se afastar dos perigos da epidemia e se encontram com três rapazes “por acaso” na Igreja de Santa Maria Novella; juntos decidem seguir, em busca do ar livre, para uma propriedade agrícola perto da cidade. Ali, durante dez dias, contam histórias de amor, num conjunto total de cem relatos com grande carga de erotismo e comicidade. O Decamerão, rompendo com a mítica literatura medieval, é considerado o primeiro livro realista da literatura, onde os valores terrenos são valorizados. Porém, as circunstâncias descritas em Decamerão conservam ainda o senso medieval de numerologia e significados místicos.
No prólogo, o autor explica que inventou as histórias para servir de consolo e distração às pessoas infelizes no amor, sobretudo às mulheres, que por imposição social reprimiam os sentimentos amorosos, ao contrário do que ocorria com os homens. “A Sorte mostrou-se menos propícia, como vemos, para as frágeis mulheres, e mais avara lhes foi de amparo. Em socorro e refúgio das que amam, é que escrevo (pois, para as demais, são suficientes a agulha, o fuso e a roca)” (BOCCACCIO, 2003, p. 8).
Difícil escolher trechos desta obra prima da literatura. Vejamos um exemplo, que permite, entre outras coisas, entrar em contato com seu elegante estilo de escrita:
Sentindo muito calor, fosse por causa do tempo, fosse pelo jogo amoroso, ambos adormeceram nus, sem lençol nem coberta sobre o corpo. Catarina dormiu com o braço direito por baixo do pescoço de Ricardo, e mão esquerda agarrada àquilo que as mulheres, quando estão entre os homens, não chamam pelo seu nome real (BOCCACCIO, 20003, p. 235).
Em várias passagens e em diferentes histórias, aparecem de maneira clara e aberta as críticas ao poder da Igreja, manifestado pelos padres e monges:
Ali o padre, dando-lhe as mais doces beijocas do mundo e tornando-a parenta de Deus Nosso Senhor, com ela se divertiu e satisfez-se por bastante tempo(BOCCACCIO, 2003, p. 329).
Assim refletido, e tendo modificado inteiramente o propósito pelo qual fora até ali, acercou-se mais da moça. Com voz melíflua, pôs-se a confortá-la e a pedir, com instância, que não chorasse. Palavra puxa palavra, até que ele chegou ao ponto de poder evidenciar a moça o seu desejo. A jovem, que não era construída de ferro nem de diamante, atendeu, muito cômoda e amavelmente, aos prazeres do abade. O padre abraçou-a; beijou-a muitas vezes, seguidamente; atirou-se com ela na cama do monte. Seja por enorme consideração, ou ao venerável peso de sua própria dignidade, ou pela idade tenra da jovem – seja, então, por recear causar-lhe mal, pelo seu excessivo peso -, o abade não se pôs sobre o peito da moça, antes colocou-a sobre o seu próprio peito. E, durante muito tempo, entreteve-se com ela (BOCCACCIO, 2003, p. 35).
4.2.2 Geoffrey Chaucer e Os Contos da Cantuária
Os Contos da Cantuária são uma coleção de histórias, que se acredita terem sido escritas a partir de 1387 por Geoffrey Chaucer, considerado um dos consolidadores da língua inglesa. Na obra, cada conto é narrado por um peregrino de um grupo que se prepara para realizar uma viagem à Catedral da Cantuária para visitar o túmulo de São Thomas Becket, estando entre os viajantes o próprio autor. A estrutura geral é muito semelhante ao Decamerão de Boccaccio, embora segundo Paulo Vizioli (1991), o autor não tenha tomado conhecimento da obra de Boccaccio.
No Prólogo, o autor descreve em primeira pessoa os peregrinos. As descrições são muito detalhadas, incluindo a aparência física, defeitos e virtudes de personalidade e dados da biografia. A variedade de personagens dos Contos da Cantuária é muito rica, com representantes das mais variadas posições sociais e ofícios. Quase toda a sociedade medieval está retratada entre os peregrinos. Os temas também são os mais diversos. Os contos estão recheados de acontecimentos curiosos, passagens pitorescas, citações clássicas e ensinamentos morais relacionados à vida e aos costumes do século XIV na Inglaterra, com imagens de pessoas reais e numa visão de mundo que pode ser chamada de “moderna” (MEDEIROS, 2007).
A mulher de Bath, viúva por cinco vezes, e querendo arrumar outro marido, conta para os demais peregrinos, no prólogo de sua história (Conto da Mulher de Bath), suas peripécias amorosas e sexuais. Numa passagem onde a personagem questiona por que não poderia se casar mais uma vez, diz que não tem nada contra a virgindade, porém isso não seria coisa para ela.
Na minha vocação e nos meus dotes
Prossigo sem melindres ou fricotes
Usando livremente e com fervor
Os órgãos que ganhei do Criador.
Deus me livre, fazer-me de difícil?
Meu marido usará meu orifício
Quando quiser, pagando o seu imposto.
(CHAUCER, 2013, p. 327)
Em outro momento a mulher se refere ao prazer que sente com os homens:
Qualquer mulher esperta e habilidosa
Agrada o seu amante o quanto possa;
Mas eu os tinha aqui na minha mão;
Suas terras me doaram, por paixão;
Por que então lhes mostrar mais diligência?
Foi por prazer e conveniência
Que eu lhes tirava o couro – ‘Mais e mais!’,
Eu dizia, e eles respondiam: ‘Ai!’.
(CHAUCER, 2013, p. 329)
Mas havia um preço a pagar, ou melhor, era uma relação de troca:
E na cama é que eu mais atormentava:
Tão logo a mão me bolinava,
Eu não tardava em lhes cobrar o preço;
Não lhes dava prazer sem pagamento!
Se aceitavam a mão e o meu tributo,
Eu tolerava a mão e dava tudo.
(CHAUCER, 2013, p. 336)
Ao se referir ao seu quarto marido, “um rufião! Tinha uma amante – e eu cheia de tesão!”; confessa que após beber, ficava indefesa:
Vinho desperta Vênus, minha amiga.
Se o frio gera granizo, a boca quente
Inflama o corpo e deixa o rabo ardente;
Quando bebe, a mulher fica à mercê
Do espertalhão que queira nos comer.
(CHAUCER, 2013, p. 337)
Também assume que gostava de ser maltratada pelo seu quinto esposo, e que isso dava um “tempero” especial na relação:
Falemos agora do meu último marido
Que o fogo eterno o poupe! Esse bandido
Foi comigo o mais bruto dos calhordas.
Ainda nas costelas trago as mostras
Das surras que me deu. Porém, no leito,
Era amante voraz, rijo e perfeito.
Mesmo após me bater osso por osso,
La vinha com cortejos, sinuoso;
Sem resistir a tudo eu perdoava,
E esta minha belle chose alegre dava.
(CHAUCER, 2013, p. 339)
O Conto da Mulher de Bath, é considerado um exemplum profano, poderia ser lido hoje quase um “manifesto feminista”, dada a sua forma de se referir às mulheres. Infelizmente, não podendo me alongar mais, transcrevo apenas o último parágrafo da história contada pela mulher de Bath.
E até o fim da sua vida, em alegria,
Viveram. Jesus Cristo, a nós envia
Esposos jovens, ternos, bons e quentes
- Mas que eles vivam menos do que a gente.
Homem que for rebelde e rabugento
- Jesus, faz com que viva ainda menos!
E ao avarento, que não abre a mão,
Que Deus lhe mande a peste e a punição!
(CHAUCER, 2013, p. 362)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há espaço para muitas “considerações”, porém o que posso dizer é que a feitura deste trabalho mais uma vez reafirmou que ao estudarmos determinada época histórica, cultura ou sociedade, devemos prestar atenção a todos os seus aspectos, ao seu modo de vida, às suas representações artísticas, às suas obras literárias, e também à sexualidade, que considerada como “dispositivo histórico” é uma excelente categoria de análise. Utilizei aqui basicamente textos literários, mas outros estudos poderiam ser feitos a partir de diversas fontes, como obras e objetos artísticos do campo das artes visuais, por exemplo.
Percebemos neste breve ensaio, como os discursos (e os silêncios) sobre a sexualidade vão se modificando, se adaptando, se rearranjando dentro dos variados e diferentes contextos, permeados por relações complexas de poder e também de resistência.
Parece ser interessante fazer comparações desses comportamentos, que às vezes podem nos parecer tão distantes, com a nossa realidade atual, evidentemente com o cuidado de não “projetarmos” nossa vivência sobre o passado. Penso que estes estudos sobre as manifestações da sexualidade e questões de gênero em outras épocas históricas, podem talvez nos fazer entender um pouco melhor como chegamos ao que somos hoje ou questionar certos discursos que ainda hoje predominam em alguns setores de nossa sociedade.
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REFERÊNCIAS
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______. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
ANÔNIMO. A Epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Frontes, 1992.
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BOCCACCIO. Decamerão. São Paulo: Nova Cultural, 2003.
BOUZON, Emanuel. O Código de Hammurabi. Petrópolis: Vozes, 1987.
CHAUCER, Geoffrey. Os Contos da Cantuária. São Paulo: T. A. Queiroz, 1991.
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NOTAS
[1] De acordo com Michel Foucault (1998), o termo “sexualidade” surgiu tardiamente, no início do século XIX, porém não marca exatamente o início brusco daquilo a que se refere; o uso da palavra foi estabelecido em relação a outros fenômenos sociais, aos novos conhecimentos científicos e às instituições nascentes. (voltar ao texto na nota 1)
[2] O termo “poder” é utilizado aqui de acordo com a definição de Michel Foucault (1999), como algo descentralizado, onipresente, horizontal, heterogêneo e difuso: “o poder não é uma instituição ou uma estrutura, não é uma certa potência que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1999, p. 89). O poder não é, portanto, um objeto natural, uma coisa; é uma prática social constituída historicamente; é encontrado em qualquer parte, em todas as relações. Esse poder é o responsável, segundo o autor, pela produção do saber. (voltar ao texto na nota 2)
[3] O awílum era um dos três grupos sociais da população babilônica apresentada no Código de Hammurabi. Era o homem livre, com todos os direitos de cidadão. Era a camada mais ampla da sociedade, formada por funcionários, escribas, sacerdotes, comerciantes, profissionais liberais, trabalhadores rurais e parte dos militares, com grandes diferenças sociais entre si (BOUZON, 1987). (voltar ao texto na nota 3)
[4] Neste trabalho, estou utilizando a Versão Católica da Bíblia, disponível “on-line” na internet, no endereço: http://www.bibliaonline.com.br/. (voltar ao texto na nota 4)
[5] Pentateuco é o nome dado ao conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. (voltar ao texto na nota 5)
[6] Os livros sapienciais são aqueles em que o tema é a sabedoria. São eles: Provérbios, Jó, Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria, Salmos e Cântico dos Cânticos (estes dois últimos também considerados líricos ou poéticos). (voltar ao texto na nota 6)
[7] Sobre este assunto, ver Jeffrey Weeks (2007), onde ele estuda as identidades sexuais, a institucionalização da heterossexualidade e a invenção da homossexualidade. Segundo este autor, a definição de heterossexualidade como sendo a norma foi forçada por diferentes discursos (principalmente médicos e higienistas) na tentativa de definir a homossexualidade como a forma “anormal” da sexualidade. (voltar ao texto na nota 7)
[8] Para quem quiser aprofundar este assunto, aconselho a leitura da obra de Kenneth Dover, A Homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. (voltar ao texto na nota 8)
[9] Ao falar em romanos, devo esclarecer que se trata de um emaranhado de povos de culturas diferentes, com grandes diversidades sociais, culturais, jurídicas e econômicas. (voltar ao texto na nota 9)
[10] A sigla CIL significa Corpus Inscriptionum Latinarum e o arquivo com a visualização onde estas e outras inscrições latinas clássicas podem ser acessadas na internet, no sitio do Berlin-Brandenburg Academy of Sciences and Humanities: http://cil.bbaw.de/cil_en/dateien/datenbank_eng.php
Para maiores informações ver FEITOSA, L.C. Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2005. (voltar ao texto na nota 10)
[11] Conforme G. W. Trompf (1973), entre a queda de Roma e a ascensão de Carlos Magno (século IX), noventa e quatro por cento da literatura latina foi perdida, o que restou foi salvo pelos monges carolíngios. (voltar ao texto na nota 11)
Este texto foi publicado originalmente no blog Kaleidoskopiokultural, pertencente ao autor. Disponível em: https://kaleidoskopiokultural.wordpress.com/. A presente versão inclui algumas modificações e acréscimos, realizados em 2016.